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Descolamento Prematuro de Placenta (DPP)

O Descolamento Prematuro de Placenta (DPP), também conhecido como abruptio placentae, é uma das mais graves emergências obstétricas. Caracteriza-se pela separação, parcial ou total, da placenta normalmente inserida no corpo uterino, antes do nascimento do feto, em gestações com idade gestacional superior a 20 semanas. Esta condição representa uma ameaça direta à vida tanto da mãe quanto do feto, exigindo diagnóstico rápido e manejo assertivo.

Introdução & Epidemiologia

O DPP complica aproximadamente 0,5% a 1% de todas as gestações, sendo uma causa significativa de morbimortalidade materna e perinatal. A compreensão dos seus fatores de risco é fundamental para a suspeição clínica e, em alguns casos, para a prevenção.

Fatores de Risco

Os fatores de risco para o DPP são múltiplos, sendo a doença hipertensiva a mais fortemente associada. É crucial reconhecê-los durante o pré-natal e na admissão da paciente.

  • Hipertensão Materna: É o fator de risco mais comum e importante. Inclui hipertensão crônica, pré-eclâmpsia/eclâmpsia e hipertensão gestacional. A vasculopatia subjacente fragiliza as arteríolas espiraladas, predispondo à ruptura.
  • DPP em Gestação Anterior: O antecedente de DPP é o preditor mais forte de recorrência, com um risco que aumenta de 10 a 15 vezes (cerca de 10-15%) em uma gestação futura.
  • Trauma Abdominal: Traumas diretos (agressões, acidentes de carro com impacto no abdome) ou mecanismos de desaceleração súbita podem causar forças de cisalhamento entre a placenta e a parede uterina inelástica, levando à separação.
  • Uso de Substâncias Vasoativas: O tabagismo (duplica o risco) e o uso de cocaína (aumenta o risco em até 10 vezes) provocam vasoconstrição aguda, que pode levar à isquemia e ruptura vascular na decídua.
  • Idade Materna Avançada: Mulheres com mais de 35-40 anos apresentam maior risco, em parte devido à maior prevalência de comorbidades como hipertensão crônica.
  • Multiparaidade: Grande número de gestações anteriores está associado a um risco aumentado.
  • Descompressão Uterina Súbita: Ocorre tipicamente na rotura de membranas em um quadro de polidrâmnio ou após o parto do primeiro gemelar em uma gestação múltipla. A rápida diminuição do volume uterino pode levar ao descolamento.
  • Trombofilias: Condições hereditárias ou adquiridas que predispõem à trombose, como a síndrome antifosfolípide, podem estar associadas.
  • Rotura Prematura de Membranas Ovulares (RPMO): A associação é bem estabelecida, embora o mecanismo exato (inflamação/infecção ou a própria perda de líquido) não seja totalmente claro.
Referência Rápida: Principais Fatores de Risco para DPP
Fator de Risco Mecanismo Principal Importância Clínica
Hipertensão Materna (Crônica, Pré-eclâmpsia) Vasculopatia, fragilidade das arteríolas espiraladas Fator de risco modificável mais comum.
DPP Prévio Provável etiologia subjacente persistente Maior preditor de recorrência (risco de 10-15%).
Trauma Abdominal Forças de cisalhamento Causa aguda e súbita. Sempre suspeitar após acidentes.
Tabagismo / Cocaína Vasoconstrição aguda, isquemia decidual Fatores de risco comportamentais importantes.

Fisiopatologia

O evento central na fisiopatologia do DPP é a ruptura de uma ou mais arteríolas espiraladas maternas na decídua basal. Esse sangramento leva à formação de um hematoma retroplacentário. À medida que o hematoma se expande, ele disseca e separa a placenta da parede uterina, comprimindo-a e comprometendo a troca materno-fetal de gases e nutrientes na área afetada.

Formação do Hematoma e Liberação de Tromboplastina

A decídua e o tecido placentário são extremamente ricos em fator tecidual (tromboplastina). Com a formação do hematoma e a lesão tecidual, uma grande quantidade de tromboplastina é liberada na circulação materna. Isso desencadeia uma ativação maciça da cascata de coagulação, podendo levar a um estado de Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD). A CIVD é caracterizada pelo consumo de fatores de coagulação (especialmente fibrinogênio) e plaquetas, resultando em um estado paradoxal de trombose microvascular e sangramento sistêmico.

Raciocínio Clínico

No DPP, o fibrinogênio é o primeiro e mais sensível marcador laboratorial da coagulopatia de consumo. Níveis séricos abaixo de 150-200 mg/dL em uma gestante com sangramento são um sinal de alerta grave, e níveis abaixo de 100 mg/dL indicam uma coagulopatia severa instalada, exigindo reposição imediata com crioprecipitado ou plasma fresco congelado.

Útero de Couvelaire

Em casos graves, o sangue do hematoma retroplacentário pode infiltrar-se extensivamente no miométrio, chegando até a serosa uterina. Esse fenômeno é conhecido como Útero de Couvelaire ou apoplexia uteroplacentária. O útero adquire uma aparência violácea, equimótica e perde sua capacidade contrátil normal. A principal consequência clínica do Útero de Couvelaire é a atonia uterina pós-parto, que agrava a hemorragia. É importante notar que a presença do Útero de Couvelaire, por si só, não é uma indicação absoluta de histerectomia. O manejo inicial deve focar em uterotônicos e outras medidas para controlar a atonia.

Apresentação Clínica & Exame Físico

O diagnóstico do DPP é, em sua essência, clínico. A apresentação pode variar drasticamente, desde casos leves e assintomáticos até quadros catastróficos com choque materno e óbito fetal. A tríade clássica, embora nem sempre completa, orienta a suspeita diagnóstica.

A Tríade Clássica do DPP

  1. Sangramento Vaginal Doloroso: O sangramento está presente em cerca de 80% dos casos. Tipicamente, o sangue é escuro, tipo "vinho do Porto", devido à sua origem retroplacentária e tempo de coagulação. A dor é um sintoma cardinal que diferencia o DPP da placenta prévia. Em cerca de 20% dos casos, o sangramento pode ser oculto, ficando contido atrás da placenta, o que pode levar a uma subestimação da perda sanguínea e a um quadro materno mais grave do que o esperado.
  2. Hipertonia Uterina e Dor Abdominal/Lombar: O útero torna-se tenso, rígido e doloroso à palpação. Essa contratilidade persistente e tetânica é descrita classicamente como "útero lenhoso". A dor é tipicamente de início súbito e contínua, diferente das contrações intermitentes do trabalho de parto.
  3. Sofrimento Fetal: A separação da placenta compromete a perfusão e a oxigenação fetal. Os sinais de sofrimento fetal são frequentemente os primeiros a aparecer e incluem taquicardia fetal inicial, seguida por perda de variabilidade, desacelerações tardias e bradicardia sustentada. Em descolamentos superiores a 50% da superfície placentária, o óbito fetal é quase inevitável.

No exame físico, a avaliação dos sinais vitais maternos é crucial. Taquicardia e hipotensão podem indicar instabilidade hemodinâmica, muitas vezes desproporcional ao sangramento vaginal visível. A palpação abdominal revelará a hipertonia e a dor uterina. O toque vaginal deve ser realizado com extrema cautela e apenas após a exclusão de placenta prévia por ultrassonografia, para não agravar o sangramento.

Avaliação Diagnóstica

A confirmação diagnóstica do DPP é frequentemente feita no pós-parto, pela visualização do coágulo retroplacentário aderido à placenta. No entanto, o manejo deve ser instituído com base na forte suspeita clínica.

Diagnóstico Clínico

O diagnóstico é primariamente clínico, baseado na presença dos sinais e sintomas clássicos. A ausência de um ou mais elementos da tríade não exclui o diagnóstico, especialmente em casos mais leves.

Ultrassonografia

A ultrassonografia tem um papel importante, mas limitado. Sua principal utilidade é excluir a placenta prévia, que é o principal diagnóstico diferencial do sangramento na segunda metade da gestação. A sensibilidade do ultrassom para detectar o hematoma retroplacentário é baixa (25-50%), pois um hematoma agudo pode ser isoecoico (com ecogenicidade semelhante) ao tecido placentário. Portanto, um ultrassom normal não exclui o diagnóstico de DPP.

Avaliação Laboratorial

  • Hemograma Completo: Para avaliar o grau de anemia. Inicialmente, o hematócrito pode estar falsamente normal devido à hemoconcentração.
  • Coagulograma Completo: Essencial para detectar a CIVD. Inclui contagem de plaquetas, tempo de protrombina (TP), tempo de tromboplastina parcial ativada (aPTT), e, mais importante, a dosagem de fibrinogênio.
  • Tipagem Sanguínea e Fator Rh: Indispensável para preparar transfusão de hemoderivados.
  • Teste de Kleihauer-Betke: Este teste detecta hemácias fetais na circulação materna. Sua principal função não é diagnosticar o DPP, mas sim quantificar a hemorragia feto-materna para calcular a dose adequada de imunoglobulina anti-D em mães Rh-negativas, prevenindo a aloimunização.

Tratamento & Manejo

O manejo do DPP é uma emergência e visa dois objetivos primários: estabilizar hemodinamicamente a mãe e realizar o parto. A conduta definitiva é a interrupção da gestação.

Medidas Iniciais e Estabilização Materna

  1. Garantir dois acessos venosos calibrosos (jelco 14G ou 16G).
  2. Iniciar reposição volêmica agressiva com cristaloides (Ringer Lactato).
  3. Coletar exames laboratoriais (hemograma, coagulograma, tipagem sanguínea).
  4. Sondagem vesical de demora para monitorar o débito urinário, um indicador crucial da perfusão tecidual.
  5. Monitorização contínua dos sinais vitais maternos e da frequência cardíaca fetal (cardiotocografia).
  6. Disponibilizar hemoderivados: solicitar reserva de concentrado de hemácias. Transfundir se houver instabilidade hemodinâmica, anemia grave ou sangramento ativo. Repor fatores de coagulação (plasma fresco, crioprecipitado) e plaquetas conforme o coagulograma.

Conduta Obstétrica: A Via de Parto

A decisão sobre a via de parto depende criticamente da estabilidade hemodinâmica materna, da vitalidade fetal e da idade gestacional.

  • Cesariana de Emergência: É a via de parto na maioria dos casos. Está indicada sempre que houver:
    • Sofrimento fetal agudo com feto vivo e viável.
    • Instabilidade hemodinâmica materna que não responde à reanimação inicial.
    • Sangramento vaginal volumoso e persistente.
    • Falha de progressão ou contraindicação ao parto vaginal.
  • Parto Vaginal: Pode ser considerado em situações específicas:
    • Óbito fetal: Na ausência de sofrimento fetal (feto morto), e com a mãe hemodinamicamente estável, o parto vaginal é a via preferencial. A cesariana em uma paciente com coagulopatia instalada aumenta muito o risco de hemorragia. A amniotomia (ruptura artificial das membranas) é uma manobra fundamental, pois acelera o trabalho de parto, reduz a pressão intrauterina e diminui a passagem de tromboplastina para a circulação materna.
    • Trabalho de parto em fase avançada com parto iminente.

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2022)

Cenário: Paciente com diagnóstico clínico de DPP, feto a termo, vivo, apresentando sinais de sofrimento fetal (ex: bradicardia, FCF de 118 bpm com desacelerações). Conduta: A resolução da gestação deve ser imediata e por via cesariana. A prioridade máxima é retirar o feto do ambiente hostil e controlar a hemorragia materna. Qualquer atraso para tentar um parto vaginal em um cenário de sofrimento fetal agudo aumenta exponencialmente o risco de óbito ou sequela neurológica grave.

Armadilhas do ENARE

Uma questão clássica apresenta uma paciente com DPP e feto morto. A tendência do candidato é indicar cesariana pela gravidade do quadro. No entanto, se a mãe estiver estável e sem sangramento incontrolável, a conduta de eleição é a indução do trabalho de parto com amniotomia e ocitocina. A cesárea é reservada para instabilidade materna refratária ou hemorragia que ameace a vida da mãe.

Complicações & Prognóstico

O DPP está associado a uma série de complicações graves para a mãe e o feto.

Complicações Maternas

  • Choque Hemorrágico: Principal causa de mortalidade materna.
  • Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD): Ocorre em até 10-20% dos casos graves.
  • Insuficiência Renal Aguda: Secundária à hipovolemia e hipoperfusão renal.
  • Síndrome de Sheehan: Necrose da hipófise anterior causada por hipotensão severa, levando a pan-hipopituitarismo no pós-parto.
  • Histerectomia Puerperal: Necessária em casos de atonia uterina refratária às medidas clínicas e cirúrgicas conservadoras.

Complicações Fetais

  • Óbito Fetal Intrauterino: A taxa de mortalidade perinatal pode chegar a 20-30%.
  • Hipóxia e Asfixia Perinatal: Podem resultar em danos neurológicos permanentes, como paralisia cerebral.
  • Prematuridade: Frequentemente iatrogênica, devido à necessidade de interrupção da gestação.
  • Restrição de Crescimento Intrauterino (RCIU): Associada a casos de DPP crônico ou descolamentos parciais de pequena monta.

Populações Especiais

Manejo do DPP Leve em Feto Pré-termo

Em uma situação muito seleta de DPP leve (sangramento discreto, sem hipertonia, mãe estável e feto sem sinais de sofrimento) em uma gestação pré-termo (< 34 semanas), a conduta expectante pode ser considerada.

  • Critérios: Estabilidade hemodinâmica materna, ausência de coagulopatia, ausência de sangramento ativo significativo e bem-estar fetal assegurado na monitorização.
  • Manejo: Internação hospitalar em centro terciário com capacidade de cirurgia de emergência e UTI neonatal.
    • Monitorização materno-fetal contínua ou intermitente rigorosa.
    • Administração de corticosteroides (betametasona ou dexametasona) para maturação pulmonar fetal.
    • Sulfato de magnésio para neuroproteção fetal se idade gestacional < 32 semanas.
  • A interrupção da gestação é indicada a qualquer sinal de piora do quadro materno ou fetal.

Aconselhamento para Futuras Gestações

Dado o alto risco de recorrência (10-15%), o aconselhamento é fundamental. Deve-se enfatizar o controle rigoroso dos fatores de risco modificáveis, como cessação do tabagismo e controle pressórico adequado. Em gestações futuras, a vigilância pré-natal deve ser intensificada, com ultrassonografias seriadas para avaliação do crescimento fetal e bem-estar. O uso de aspirina em baixas doses pode ser considerado em pacientes com histórico de pré-eclâmpsia ou outras condições de risco.

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