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Contracepção Intrauterina

A contracepção intrauterina (CIU) representa uma das modalidades contraceptivas mais eficazes e de longa duração disponíveis. Classificada como um método contraceptivo reversível de longa ação (LARC - Long-Acting Reversible Contraception), sua popularidade tem crescido devido à alta eficácia, conveniência e excelentes taxas de satisfação e continuação entre as usuárias. Os LARCs, incluindo os dispositivos intrauterinos (DIUs) e os implantes subdérmicos, são considerados métodos de primeira linha para a maioria das mulheres, incluindo adolescentes e nulíparas, por diversas sociedades médicas internacionais e pelo Ministério da Saúde do Brasil.

Existem dois tipos principais de dispositivos intrauterinos disponíveis no Brasil:

  • Dispositivos Intrauterinos liberadores de Cobre (DIU-Cu): São dispositivos de polietileno com fio de cobre enrolado em sua haste vertical e/ou braços horizontais. Não contêm hormônios e sua duração de ação pode variar de 5 a 10 anos, dependendo do modelo.
  • Sistemas Intrauterinos liberadores de Levonorgestrel (SIU-LNG): São dispositivos de polietileno em formato de "T" que contêm um reservatório de levonorgestrel (um progestagênio) em sua haste vertical, liberando uma dose baixa e constante do hormônio diretamente na cavidade uterina. Sua duração de ação é de 5 anos (para os modelos de 52 mg) ou 3 anos (para os modelos de menor dosagem).

A eficácia dos métodos intrauterinos é comparável à da esterilização cirúrgica, com taxas de falha no primeiro ano de uso típico de aproximadamente 0.8% para o DIU-Cu e 0.2% para o SIU-LNG. Essa alta eficácia se deve ao fato de não dependerem da adesão diária da usuária.

Fisiopatologia e Mecanismo de Ação

O mecanismo de ação difere fundamentalmente entre os dispositivos de cobre e os hormonais, embora ambos atuem primariamente no ambiente uterino para prevenir a gravidez antes da implantação.

Dispositivo Intrauterino de Cobre (DIU-Cu)

O principal mecanismo de ação do DIU-Cu é a indução de uma reação inflamatória estéril e crônica no endométrio. A presença do corpo estranho (o dispositivo) e, mais importante, a liberação contínua de íons de cobre na cavidade uterina, cria um ambiente hostil para os gametas.

  • Ação Espermicida: Os íons de cobre são tóxicos para os espermatozoides, diminuindo sua motilidade e capacidade de fertilizar o óvulo. Esta é considerada a ação primária e mais importante.
  • Alterações no Muco Cervical: A reação inflamatória pode alterar a composição do muco cervical, tornando-o mais espesso e hostil à passagem dos espermatozoides.
  • Inibição da Fertilização: A combinação do efeito espermicida e das alterações no fluido uterino e tubário impede que o espermatozoide encontre e fertilize o óvulo. Portanto, o DIU-Cu atua principalmente como um método contraceptivo que previne a fertilização.
  • Ação Anti-implantação: Caso a fertilização ocorra (evento raro), o endométrio inflamado se torna inadequado para a implantação do blastocisto. Este é um mecanismo secundário.

Sistema Intrauterino de Levonorgestrel (SIU-LNG)

O SIU-LNG exerce seu efeito contraceptivo através da liberação local de um progestagênio, o levonorgestrel. As concentrações hormonais no endométrio são altíssimas, enquanto os níveis séricos são muito baixos, minimizando os efeitos colaterais sistêmicos. Seus mecanismos são múltiplos:

  • Espessamento do Muco Cervical: Este é o efeito mais rápido e consistente. O levonorgestrel torna o muco cervical espesso, viscoso e impenetrável aos espermatozoides, formando uma barreira mecânica eficaz. Este é o principal mecanismo de ação.
  • Supressão e Atrofia Endometrial: A alta concentração local de progestagênio causa uma profunda supressão do crescimento endometrial, tornando-o fino, atrófico e com glândulas inativas. Esse endométrio é inadequado para a implantação, caso a fertilização ocorra. Essa atrofia também é responsável pela significativa redução do fluxo menstrual.
  • Inibição da Ovulação (Inconsistente): Em uma parcela das usuárias, especialmente no primeiro ano de uso, os níveis sistêmicos de levonorgestrel podem ser suficientes para suprimir o pico de LH e inibir a ovulação. No entanto, a maioria das mulheres continua a ovular normalmente após o primeiro ano. Este não é o principal mecanismo contraceptivo do SIU-LNG.
  • Alteração da Motilidade Tubária: Pode haver uma diminuição da motilidade das trompas, dificultando o transporte do óvulo e do espermatozoide.

Seleção de Candidatas e Contraindicações

A avaliação criteriosa da candidata é fundamental para o sucesso do método. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu os Critérios Médicos de Elegibilidade para o Uso de Contraceptivos (MEC), que classificam as condições em 4 categorias. As categorias 3 e 4 representam as contraindicações relativas e absolutas, respectivamente.

Critérios de Elegibilidade da OMS (Categorias 3 e 4)

A seguir, uma tabela resumindo as principais contraindicações para o uso de DIU-Cu e SIU-LNG.

Condição DIU-Cu SIU-LNG Comentários
Gravidez (suspeita ou confirmada) 4 4 Contraindicação absoluta para ambos.
Sangramento Uterino Anormal (SUA) não investigado 4 4 A causa deve ser investigada antes da inserção para excluir malignidade.
Doença Inflamatória Pélvica (DIP) atual 4 4 A inserção deve ser adiada até a resolução completa da infecção.
Cervicite purulenta atual (Clamídia/Gonococo) 4 4 A inserção pode ser realizada após o início do tratamento, mas o ideal é aguardar a resolução.
Distorção significativa da cavidade uterina 4 4 Anomalias congênitas (útero bicorno) ou miomas submucosos que distorcem a cavidade impedem a correta colocação.
Câncer de mama atual 1 4 Contraindicação absoluta para o SIU-LNG devido ao componente hormonal progestagênico. O DIU-Cu é seguro.
Câncer de colo de útero ou endométrio 4 4 Aguardar tratamento e remissão.
Risco aumentado para ISTs 3 3 Os benefícios geralmente superam os riscos. Aconselhar sobre uso de preservativos.
AIDS (CD4 < 200 ou não em TARV) 3 3 Se clinicamente bem e em terapia antirretroviral (TARV), a categoria é 2.

Legenda: Categoria 1: Sem restrições. Categoria 3: Riscos geralmente superam os benefícios (contraindicação relativa). Categoria 4: Risco inaceitável à saúde (contraindicação absoluta).

Armadilhas do ENARE: DIU Hormonal e Câncer de Mama

Conceito-Chave (ENARE 2023, Q78): Uma questão clássica de prova envolve a escolha do método contraceptivo para uma paciente com histórico ou diagnóstico de câncer de mama. É imperativo saber que o SIU-LNG é absolutamente contraindicado (Categoria 4 da OMS) em mulheres com câncer de mama atual, pois é um tumor hormônio-sensível. Já o DIU-Cu é uma opção segura e eficaz (Categoria 1), pois não possui componente hormonal. Para história pregressa de câncer de mama sem evidência de doença por mais de 5 anos, o SIU-LNG passa a ser Categoria 3.

Avaliação Pré-Inserção

Uma consulta detalhada antes do procedimento é essencial para garantir a segurança e o sucesso do método.

  1. Anamnese Completa: Investigar histórico médico, ginecológico e obstétrico. Questionar sobre padrão menstrual, histórico de ISTs, DIP, cirurgias pélvicas e parceiros sexuais.
  2. Exame Pélvico Bimanual: É um passo obrigatório. O objetivo é avaliar o tamanho, a forma, a mobilidade e, crucialmente, a posição do útero (anteversoflexão ou retroversoflexão). Um útero em retroversoflexão acentuada aumenta o risco de perfuração durante a inserção se a técnica não for ajustada.
  3. Exame Especular: Visualizar o colo do útero para descartar cervicite purulenta ou outras anormalidades.
  4. Exclusão de Gravidez: A inserção só pode ser feita se houver certeza razoável de que a mulher não está grávida. Isso pode ser confirmado com um teste de gravidez negativo ou se a paciente preencher critérios como estar nos primeiros 7 dias do ciclo menstrual, estar em amenorreia de lactação, ou estar usando outro método contraceptivo de forma consistente.
  5. Rastreio de ISTs: O rastreio universal não é mais recomendado. A triagem para Gonorreia e Clamídia deve ser baseada em fatores de risco (idade < 25 anos, múltiplos parceiros, novo parceiro recente, parceiro com IST). Se o rastreio for positivo, o tratamento deve ser iniciado, mas a inserção do DIU não precisa ser necessariamente adiada se a paciente estiver assintomática.
  6. Aconselhamento: É a etapa mais importante para a satisfação e continuação do método. Deve-se explicar:
    • O procedimento de inserção e o desconforto esperado.
    • Os padrões de sangramento esperados: com o DIU-Cu, é comum um aumento do fluxo menstrual e das cólicas, principalmente nos primeiros meses. Com o SIU-LNG, espera-se um período de sangramento irregular/spotting nos primeiros 3-6 meses, seguido por uma redução drástica do fluxo, podendo chegar à amenorreia em muitas usuárias.
    • Sinais de alerta para procurar o serviço de saúde (febre, dor pélvica intensa, corrimento com odor fétido, suspeita de expulsão).
    • A necessidade de verificar os fios periodicamente.

Técnicas de Inserção, Remoção e Manejo Pós-Inserção

Técnica de Inserção

  1. Posicionar a paciente em posição ginecológica.
  2. Realizar exame bimanual para confirmar a posição uterina.
  3. Inserir o espéculo vaginal e visualizar o colo do útero.
  4. Realizar antissepsia do colo e fundo de saco vaginal com solução antisséptica (ex: clorexidina aquosa).
  5. Pinçar o lábio anterior do colo com uma pinça de Pozzi ou Allis para retificar o útero.
  6. Histerometria: Inserir o histerômetro delicadamente através do orifício cervical interno até sentir resistência no fundo uterino. Isso mede a profundidade da cavidade (geralmente entre 6 e 9 cm).
  7. Carregar o DIU/SIU dentro do tubo inseridor, ajustando o marcador para a medida obtida na histerometria.
  8. Inserir o tubo aplicador através do canal cervical até que o marcador atinja o colo do útero, indicando que a ponta está no fundo uterino.
  9. Liberar os braços do dispositivo conforme a técnica específica do modelo.
  10. Remover o tubo aplicador lentamente.
  11. Cortar os fios do DIU, deixando cerca de 2-3 cm visíveis para fora do orifício cervical externo.

Manejo de intercorrências comuns

  • Dor e Cólicas: São comuns no dia da inserção e nos primeiros dias. O uso de AINEs (ex: Ibuprofeno 400-600mg) 30-60 minutos antes do procedimento e conforme necessário depois é eficaz.
  • Alterações do Sangramento:
    • DIU-Cu: Aumento do fluxo e cólicas. Manejo com AINEs ou ácido tranexâmico nos dias de maior fluxo.
    • SIU-LNG: Sangramento irregular nos primeiros meses. Aconselhamento e tranquilização são a chave. Se persistente e incômodo, um curso curto de AINEs, estrogênio ou doxiciclina pode ser tentado.
  • Fios do DIU não visíveis ("Fios Ausentes"):

    Raciocínio Clínico: Abordagem dos Fios Ausentes

    A ausência dos fios do DIU no exame especular exige uma investigação sequencial e lógica para determinar a localização do dispositivo.

    1. Excluir Gravidez: Sempre o primeiro passo. Solicitar um teste de β-hCG.
    2. Exploração do Canal Cervical: Usar uma escova endocervical (cytobrush) ou uma pinça fina (Halstead) para gentilmente "pescar" os fios que podem estar retraídos no canal.
    3. Ultrassonografia Pélvica (USG): Se os fios não forem encontrados, a USG é o exame de escolha para confirmar se o DIU está na cavidade uterina (normoposicionado ou mal posicionado) ou se foi expulso.
    4. Radiografia de Abdome e Pelve: Se a USG não visualizar o DIU na cavidade uterina, a expulsão é a causa mais provável. No entanto, uma perfuração uterina deve ser descartada. A radiografia simples pode localizar um DIU perfurado na cavidade abdominal ou pélvica.

    O manejo subsequente depende da localização: se intrauterino, pode ser removido por histeroscopia. Se extrauterino (perfurado), a remoção é cirúrgica, geralmente por laparoscopia.

Complicações e Prognóstico

Embora seguros, os dispositivos intrauterinos não são isentos de riscos.

  • Perfuração Uterina: É uma complicação rara (incidência de ~1-2 por 1000 inserções). O risco é maior em mulheres no pós-parto (especialmente lactantes, devido ao útero involuído e mais fino), com útero em retroversoflexão acentuada ou por inexperiência do profissional. A perfuração pode ser imediata ou tardia. O manejo é a remoção cirúrgica.
  • Expulsão: A taxa de expulsão varia de 2 a 10% no primeiro ano. É mais comum nos primeiros meses após a inserção e em mulheres nulíparas, com histórico de expulsão prévia, ou com inserção no pós-parto/pós-aborto imediato.
  • Doença Inflamatória Pélvica (DIP): O risco de DIP está associado primariamente ao ato da inserção, que pode introduzir bactérias da vagina/colo na cavidade uterina. O risco é maior nos primeiros 20 dias após o procedimento. Após esse período, o DIU em si não aumenta o risco de DIP em mulheres que não estão expostas a ISTs.
  • Falha do Método e Gravidez:
    • Gravidez Intrauterina: Se ocorrer, e os fios forem visíveis, o DIU deve ser removido no primeiro trimestre. A remoção diminui o risco de complicações como aborto séptico, parto prematuro e corioamnionite.
    • Gravidez Ectópica: O DIU reduz drasticamente o risco absoluto de qualquer tipo de gravidez, incluindo a ectópica. No entanto, se uma mulher engravida usando um DIU, a chance relativa dessa gravidez ser ectópica é maior do que em uma mulher que engravida sem usar contraceptivo. É fundamental suspeitar de gravidez ectópica em qualquer usuária de DIU com atraso menstrual e dor pélvica.

Populações Especiais

  • Nulíparas e Adolescentes: DIUs e SIUs são considerados métodos de primeira linha para esta população. A segurança e eficácia são bem estabelecidas, e eles superam as barreiras de adesão dos métodos de curta duração.
  • Inserção Pós-Parto e Pós-Aborto: A inserção pode ser feita imediatamente após o parto (nos primeiros 10 minutos - pós-placentária) ou no pós-aborto de primeiro ou segundo trimestre (se não houver sinais de infecção). Essas estratégias garantem contracepção altamente eficaz antes da alta hospitalar. O risco de expulsão é ligeiramente maior, mas os benefícios superam os riscos.
  • Contracepção de Emergência: O DIU-Cu é o método mais eficaz de contracepção de emergência. Inserido em até 5 dias após a relação sexual desprotegida, sua eficácia é superior a 99%. Ele atua prevenindo a fertilização e a implantação e oferece a vantagem de continuar como um método contraceptivo de longa duração.
  • Usos Terapêuticos do SIU-LNG: Além da contracepção, o SIU-LNG é um tratamento de primeira linha para:
    • Sangramento Uterino Anormal (SUA) / Sangramento Menstrual Intenso: Reduz o sangramento em até 90%, sendo uma alternativa eficaz à histerectomia em muitos casos.
    • Proteção Endometrial: Para mulheres na menopausa usando terapia de reposição estrogênica.
    • Dismenorreia e Dor Pélvica associada à Endometriose: A supressão endometrial e a redução da inflamação local promovem alívio significativo da dor.
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