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Cisto de Gartner

Introdução e Epidemiologia

O Cisto de Gartner é uma lesão cística benigna, preenchida por fluido, que se desenvolve na parede da vagina. Sua origem está ligada a remanescentes embrionários do ducto mesonéfrico, também conhecido como ducto de Wolff. Durante o desenvolvimento fetal feminino, os ductos paramesonéfricos (de Müller) evoluem para formar as tubas uterinas, o útero e o terço superior da vagina, enquanto os ductos mesonéfricos (de Wolff) normalmente regridem quase que por completo.

Os cistos de Gartner formam-se quando porções desses ductos de Wolff não regridem, persistindo no tecido conjuntivo da parede vaginal. Esses remanescentes podem se tornar obstruídos e acumular fluido seroso ou mucinoso, dando origem ao cisto. Epidemiologicamente, são considerados relativamente incomuns, sendo encontrados em aproximadamente 1-2% das mulheres. Na grande maioria dos casos, são pequenos, assintomáticos e descobertos incidentalmente durante um exame ginecológico de rotina.

Fisiopatologia

A compreensão da fisiopatologia do cisto de Gartner é inteiramente dependente da embriologia do sistema urogenital. No embrião, coexistem dois pares de ductos genitais:

  • Ductos Mesonéfricos (de Wolff): No sexo masculino, sob estímulo da testosterona, desenvolvem-se para formar o epidídimo, o ducto deferente e as vesículas seminais.
  • Ductos Paramesonéfricos (de Müller): No sexo feminino, na ausência do hormônio anti-mülleriano (AMH) e da testosterona, desenvolvem-se para formar as tubas uterinas, o útero, o cérvice e os dois terços superiores da vagina.

No desenvolvimento feminino normal, os ductos de Wolff sofrem uma involução quase completa. No entanto, vestígios podem persistir. O ducto de Gartner é o homólogo do ducto deferente masculino e representa a porção caudal persistente do ducto de Wolff na mulher. Esses remanescentes podem ser encontrados no mesovário (epoóforo e paraoóforo), ao longo do ligamento largo, na parede lateral do útero e do cérvice, e, mais comumente, na parede vaginal. Quando um segmento deste ducto se torna cístico por obstrução e acúmulo de secreções, forma-se o cisto de Gartner.

Raciocínio Clínico

A origem embriológica compartilhada entre o ducto de Wolff e partes do sistema urinário (o broto uretérico, que forma o ureter, a pelve renal e os ductos coletores, origina-se do ducto mesonéfrico) é a chave para entender a frequente associação entre cistos de Gartner e anomalias do trato urinário. A identificação de um cisto de Gartner deve sempre levantar a suspeita de anomalias renais ou ureterais concomitantes.

Apresentação Clínica e Exame Físico

A grande maioria dos cistos de Gartner é pequena (geralmente < 2 cm) e, portanto, assintomática. Quando os cistos aumentam de volume, podem causar uma variedade de sintomas, dependendo de seu tamanho e localização exata:

  • Massa Palpável: A paciente pode notar um "caroço" ou abaulamento na vagina.
  • Dispareunia: Dor durante a relação sexual, especialmente se o cisto for grande ou estiver localizado próximo à entrada da vagina.
  • Pressão Pélvica: Sensação de peso ou plenitude na pelve.
  • Sintomas Urinários: Se o cisto comprimir a uretra ou o colo vesical, pode causar dificuldade para urinar, jato urinário fraco, polaciúria, urgência ou até retenção urinária.
  • Dificuldade com Absorventes Internos: Problemas para inserir ou manter um tampão no lugar.
  • Dor Pélvica Crônica: Menos comum, mas pode ocorrer com cistos maiores.

Exame Físico

Ao exame especular ou toque vaginal, o cisto de Gartner classicamente se apresenta como uma massa lisa, de consistência cística (flutuante), móvel e geralmente não dolorosa à palpação. A localização é o dado mais característico e crucial para o diagnóstico diferencial.

Localização Típica: A localização mais comum é na parede anterolateral da vagina, predominantemente no terço superior. Essa localização reflete o trajeto do ducto de Wolff durante a embriogênese.

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2023 - Q75)

A localização clássica do cisto de Gartner é um conhecimento obrigatório para as provas. Questões de múltipla escolha frequentemente testam a capacidade do candidato de diferenciar os cistos vaginais com base em sua localização. Lembre-se: Cisto de Gartner = Parede Anterolateral, Terço Superior da Vagina. Em contraste, um cisto de glândula de Bartholin localiza-se na parede póstero-lateral, no terço inferior (introito vaginal), e um cisto de inclusão vaginal é mais comum na parede posterior, resultado de trauma obstétrico (episiotomia).

Avaliação Diagnóstica

O diagnóstico do cisto de Gartner é primariamente clínico, baseado na história e nos achados característicos do exame físico. No entanto, exames de imagem podem ser úteis para confirmar a natureza cística da lesão, avaliar sua extensão e investigar anomalias associadas.

  • Ultrassonografia Pélvica (Transvaginal): É o método de imagem inicial de escolha. Confirma a natureza cística da lesão (conteúdo anecoico, paredes finas, reforço acústico posterior) e a diferencia de massas sólidas.
  • Ressonância Magnética (RM) de Pelve: Oferece uma excelente resolução de tecidos moles e é superior para delinear a anatomia pélvica complexa. É particularmente útil em cistos grandes, para avaliar a relação com estruturas adjacentes (bexiga, uretra, reto) e para identificar anomalias urogenitais associadas, como um ureter ectópico que drena para o cisto.
  • Investigação do Trato Urinário: Devido à alta associação com anomalias do sistema urinário, uma avaliação com ultrassonografia renal e de vias urinárias é frequentemente recomendada, especialmente em casos sintomáticos, cistos grandes ou complexos.

Diagnóstico Diferencial de Massas Vaginais

Condição Localização Típica Características Clínicas
Cisto de Gartner Parede anterolateral, terço superior Remanescente do ducto de Wolff. Liso, flutuante. Associado a anomalias urinárias.
Cisto de Inclusão Vaginal Parede posterior, terço inferior Cisto mais comum da vagina. Resulta de trauma (parto, cirurgia) que aprisiona epitélio.
Cisto da Glândula de Bartholin Parede póstero-lateral, no introito (posição 4 ou 8 horas) Obstrução do ducto da glândula. Pode infectar e formar um abscesso doloroso.
Divertículo Uretral Parede anterior, suburetral Pode apresentar a tríade clássica: disúria, dispareunia e gotejamento pós-miccional. A compressão pode exteriorizar secreção purulenta pela uretra.
Cistocele / Prolapso de Parede Anterior Parede anterior Não é um cisto verdadeiro, mas uma herniação da bexiga. Redutível e associado à manobra de Valsalva.

Tratamento e Manejo

O manejo depende da presença de sintomas.

  • Cistos Assintomáticos: Não requerem tratamento. A conduta é expectante, com acompanhamento clínico regular. A paciente deve ser tranquilizada sobre a natureza benigna da lesão.
  • Cistos Sintomáticos: O tratamento é cirúrgico e visa o alívio dos sintomas e a confirmação diagnóstica histopatológica.
    • Excisão Cirúrgica (Cistectomia): É o tratamento de escolha. Consiste na dissecção cuidadosa e remoção completa da parede do cisto. Este método oferece a menor taxa de recorrência e fornece o espécime completo para análise. A principal dificuldade é a proximidade com a bexiga e o ureter, exigindo técnica cirúrgica apurada.
    • Marsupialização: É uma alternativa à excisão, especialmente para cistos grandes onde a remoção completa seria tecnicamente difícil ou arriscada. O procedimento envolve a incisão do cisto, drenagem do seu conteúdo e a sutura das bordas da parede cística à mucosa vaginal adjacente, criando uma bolsa permanentemente aberta. Apresenta uma taxa de recorrência maior que a excisão.
    • Aspiração por Agulha: Geralmente não é recomendada como tratamento definitivo devido à taxa de recorrência próxima de 100%. Pode ser usada para alívio temporário ou para obter fluido para análise, mas o cisto quase sempre se refaz.

Complicações e Prognóstico

As complicações associadas aos cistos de Gartner são raras. Podem incluir:

  • Infecção: O cisto pode se tornar infectado, formando um abscesso doloroso, embora isso seja muito mais comum em cistos de Bartholin.
  • Recorrência: A recorrência após o tratamento cirúrgico é possível, sendo mais frequente após marsupialização ou excisão incompleta.
  • Complicações Cirúrgicas: Riscos inerentes ao procedimento, como sangramento, infecção da ferida operatória e lesão de estruturas adjacentes (bexiga, uretra, reto).

O prognóstico é excelente. Os cistos de Gartner são lesões uniformemente benignas, sem potencial de malignização. Com o tratamento adequado para os casos sintomáticos, a resolução dos sintomas é a regra.

Populações Especiais e Anomalias Associadas

A principal consideração especial em pacientes com cisto de Gartner é a sua forte associação com anomalias congênitas do trato urinário. A persistência do ducto de Wolff frequentemente ocorre em conjunto com outras falhas no desenvolvimento urogenital.

As anomalias mais comuns associadas incluem:

  • Agenesia ou Displasia Renal Unilateral: Ausência ou malformação de um dos rins.
  • Ureter Ectópico: O ureter, em vez de se inserir no trígono vesical, drena para uma localização anômala, que pode ser o próprio cisto de Gartner, a uretra ou a vagina. Em meninas, um ureter ectópico que drena distalmente ao esfíncter uretral causa incontinência urinária contínua ("sempre molhada") desde o nascimento.
  • Duplicação Ureteral.
  • Anomalias Uterinas: Como útero didelfo, também podem estar presentes.

Armadilhas do ENARE

Uma questão pode apresentar o caso de uma menina ou adolescente com um cisto na parede vaginal e queixa de perda urinária contínua, apesar de ter um padrão miccional normal (micções voluntárias). A presença do cisto de Gartner deve levar o candidato a suspeitar de um ureter ectópico drenando para o cisto ou para a vagina, explicando a incontinência. A resposta correta envolverá a investigação do trato urinário superior (com USG ou Uro-RM) e não apenas o tratamento do cisto vaginal.

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