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Ciclo Menstrual

O ciclo menstrual é um dos tópicos fundamentais da ginecologia e um tema recorrente nas provas de residência, incluindo o ENARE. Compreender a intrincada interação hormonal e as mudanças fisiológicas nos ovários e no útero é essencial para o diagnóstico e manejo de uma vasta gama de condições ginecológicas, desde a infertilidade até o sangramento uterino anormal.

Introdução & Definições

O ciclo menstrual é definido como a série de mudanças cíclicas e coordenadas que ocorrem nos ovários e no útero, sob o controle do eixo hipotálamo-hipófise-ovariano (HHO), com o objetivo de preparar o corpo para uma possível gravidez. O evento sentinela do ciclo é a menstruação, que marca o primeiro dia (Dia 1).

Terminologia Essencial

  • Menarca: A ocorrência da primeira menstruação na vida de uma mulher, marcando o início da capacidade reprodutiva. Geralmente ocorre entre 9 e 15 anos.

  • Menopausa: A cessação permanente da menstruação, confirmada retrospectivamente após 12 meses consecutivos de amenorreia, refletindo o esgotamento dos folículos ovarianos.

  • Eumenorreia: Ciclos menstruais que ocorrem em intervalos regulares e previsíveis, com parâmetros considerados normais.

  • Amenorreia: Ausência de menstruação. Pode ser classificada como:

    • Primária: Ausência de menarca aos 15 anos na presença de caracteres sexuais secundários, ou aos 13 anos na ausência deles.

    • Secundária: Ausência de menstruação por 3 ou mais ciclos em uma mulher que já menstruava, ou por 6 meses.

  • Oligomenorreia: Ciclos menstruais com intervalos maiores que 38 dias, ou seja, menstruações infrequentes.

  • Polimenorreia: Ciclos menstruais com intervalos menores que 24 dias, ou seja, menstruações muito frequentes.

Parâmetros de Normalidade do Ciclo Menstrual (FIGO)

A Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) estabeleceu parâmetros para definir a normalidade do ciclo menstrual em mulheres em idade reprodutiva.

Parâmetro

Normal (Percentil 5-95)

Descrição

Frequência (Duração do Ciclo)

24 a 38 dias

Intervalo em dias desde o primeiro dia de uma menstruação até o primeiro dia da seguinte.

Duração do Fluxo

≤ 8 dias

Número de dias de sangramento em um único ciclo menstrual.

Regularidade

Variação de ≤ 7-9 dias ao longo de 12 meses

A diferença entre o ciclo mais curto e o mais longo em um período de um ano.

Volume do Fluxo (Perda Sanguínea)

5 a 80 mL

Volume total de sangue perdido por ciclo. Clinicamente, é avaliado de forma subjetiva pela paciente.

O Eixo Hipotálamo-Hipófise-Ovariano (HHO)

O eixo HHO é o sistema de controle neuroendócrino que governa o ciclo menstrual. É uma cascata hierárquica de sinais hormonais com complexos mecanismos de feedback.

Hipotálamo: O Maestro do Ciclo

O hipotálamo, especificamente o núcleo arqueado, secreta o Hormônio Liberador de Gonadotrofinas (GnRH) de forma pulsátil. Esta pulsatilidade é a chave para o funcionamento de todo o eixo. O GnRH viaja pelo sistema porta-hipofisário até a adeno-hipófise.

Raciocínio Clínico

A natureza pulsátil da secreção de GnRH é absolutamente crítica. Uma secreção contínua de GnRH (como ocorre com o uso de análogos de GnRH, como a leuprorrelina) leva à dessensibilização e down-regulation dos receptores na hipófise, resultando na supressão da liberação de FSH e LH. Este é o princípio por trás do tratamento de condições como endometriose, miomas e puberdade precoce.

Hipófise (Pituitária): O Centro de Comando

As células gonadotróficas da adeno-hipófise respondem ao GnRH pulsátil secretando as gonadotrofinas:

  • Hormônio Folículo-Estimulante (FSH): Sua secreção é favorecida por pulsos de GnRH de baixa frequência. Sua principal função é estimular o recrutamento e o crescimento dos folículos ovarianos.

  • Hormônio Luteinizante (LH): Sua secreção é favorecida por pulsos de GnRH de alta frequência. É responsável pela maturação final do folículo, pelo pico ovulatório e pela manutenção do corpo lúteo.

Ovários: Os Executores e Reguladores

Os ovários respondem ao FSH e LH produzindo esteroides sexuais (principalmente estradiol e progesterona) e a proteína inibina. Estes hormônios exercem feedback sobre o hipotálamo e a hipófise.

  • Feedback Negativo: Na maior parte do ciclo, níveis baixos a moderados de estradiol e, principalmente, a progesterona, inibem a secreção de GnRH, FSH e LH. A inibina B (produzida na fase folicular) inibe seletivamente o FSH.

  • Feedback Positivo: Um fenômeno único que ocorre no final da fase folicular. Níveis altos e sustentados de estradiol (tipicamente > 200 pg/mL por mais de 50 horas) invertem o feedback no nível hipofisário, causando um aumento maciço na liberação de LH, conhecido como pico de LH, que desencadeia a ovulação.

O Ciclo Ovariano

O ciclo ovariano descreve as mudanças que ocorrem nos folículos dentro do ovário e é dividido em duas fases principais, separadas pela ovulação.

Fase Folicular (Duração Variável)

Esta fase começa no primeiro dia da menstruação e termina com o pico de LH. Sua duração pode variar entre as mulheres e até mesmo em ciclos diferentes da mesma mulher, sendo a principal responsável pela variação no comprimento total do ciclo.

  1. Recrutamento Folicular: No final do ciclo anterior, a queda de estrogênio e progesterona libera o feedback negativo, permitindo uma leve elevação do FSH. Este FSH "recruta" uma coorte de folículos antrais para iniciar o crescimento.

  2. Seleção do Folículo Dominante: Por volta do 5º-7º dia, um folículo se torna dominante. Este folículo é mais sensível ao FSH (possui mais receptores de FSH) e produz mais estradiol. O estradiol crescente, junto com a inibina B, exerce feedback negativo na hipófise, diminuindo os níveis de FSH. Os outros folículos, menos sensíveis, não conseguem sobreviver com menos FSH e sofrem atresia (morte celular).

  3. Crescimento do Dominante: O folículo dominante continua a crescer, produzindo quantidades cada vez maiores de estradiol.

Teoria das Duas Células, Duas Gonadotrofinas

Este conceito é fundamental para entender a esteroidogênese ovariana:
  • As células da Teca, sob estímulo do LH, captam colesterol e o convertem em androgênios (androstenediona e testosterona).

  • As células da Granulosa, sob estímulo do FSH, captam esses androgênios e, através da enzima aromatase, os convertem em estrogênios (principalmente estradiol).

Ovulação

Ocorre aproximadamente 10-12 horas após o pico de LH e 24-36 horas após o pico de estradiol. O pico de LH desencadeia uma cascata de eventos no folículo dominante:

  • Reativação da meiose do oócito (que estava parado em prófase I).

  • Luteinização das células da granulosa e da teca (começam a produzir progesterona).

  • Produção de enzimas proteolíticas (colagenases) e prostaglandinas que enfraquecem a parede do folículo, levando à sua ruptura e liberação do oócito (ovulação).

Fase Lútea (Duração Fixa: ~14 dias)

Esta fase começa após a ovulação e termina com o início da menstruação. Sua duração é notavelmente constante.

  1. Formação do Corpo Lúteo: As células da granulosa e da teca do folículo rompido proliferam e se transformam no corpo lúteo.

  2. Produção Hormonal: O corpo lúteo é uma glândula endócrina temporária altamente vascularizada, cuja principal função é produzir grandes quantidades de progesterona e, em menor grau, estradiol. A progesterona é o hormônio dominante desta fase.

  3. Luteólise: Se a gravidez não ocorrer, o corpo lúteo tem uma vida útil programada de cerca de 14 dias. Ele degenera em um processo chamado luteólise, resultando em uma queda acentuada nos níveis de progesterona e estradiol. Esta queda hormonal desencadeia a menstruação.

  4. Resgate pelo hCG: Se ocorrer a implantação de um embrião, ele começa a produzir o hormônio gonadotrofina coriônica humana (hCG). O hCG é estruturalmente semelhante ao LH e "resgata" o corpo lúteo, mantendo a produção de progesterona até que a placenta assuma essa função (por volta da 8ª-10ª semana de gestação).

O Ciclo Uterino (Endometrial)

O ciclo uterino descreve as mudanças no endométrio em resposta aos hormônios ovarianos.

Fase Proliferativa

Coincide com a fase folicular ovariana. É impulsionada pelo estradiol crescente. O estrogênio estimula a mitose e a proliferação das células do estroma e das glândulas endometriais, fazendo com que o endométrio se espessasse a partir de sua camada basal após a menstruação.

Fase Secretora

Coincide com a fase lútea ovariana. É impulsionada pela progesterona do corpo lúteo. A progesterona interrompe a proliferação induzida pelo estrogênio e induz a diferenciação do endométrio.

  • As glândulas tornam-se tortuosas e começam a secretar glicogênio e outras substâncias nutritivas.

  • O estroma se torna edemaciado e as artérias espiraladas se desenvolvem completamente.

  • O endométrio atinge sua espessura e receptividade máximas, criando um ambiente ideal para a implantação do embrião.

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE_2020_Q71)

É fundamental saber que a progesterona tem um efeito antiproliferativo no endométrio. Enquanto o estrogênio é o principal mitógeno (promove a proliferação), a progesterona "organiza" e estabiliza o endométrio, opondo-se ao efeito proliferativo do estrogênio. A ausência de progesterona em ciclos anovulatórios leva à proliferação endometrial descontrolada, um fator de risco para hiperplasia e câncer de endométrio.

Fase Menstrual

Ocorre em resposta à queda abrupta dos níveis de estrogênio e progesterona devido à degeneração do corpo lúteo. Essa retirada hormonal causa:

  1. Vasoespasmo intenso das artérias espiraladas, levando à isquemia do endométrio funcional.

  2. Liberação de enzimas proteolíticas e prostaglandinas.

  3. Descolamento e descamação da camada funcional do endométrio, resultando em sangramento.

Perfis Hormonais

Compreender a dinâmica dos quatro hormônios chave (FSH, LH, estradiol e progesterona) ao longo do ciclo é crucial.

  • Início da Fase Folicular (Menstruação): Todos os hormônios estão em níveis baixos (basais). O FSH começa a se elevar lentamente.

  • Meio da Fase Folicular: O estradiol começa a subir, produzido pelo folículo dominante. Isso causa feedback negativo, e o FSH começa a cair.

  • Final da Fase Folicular (Periovulatório): O estradiol atinge seu pico, desencadeando o pico de LH (e um pico menor de FSH) por feedback positivo.

  • Início da Fase Lútea: LH e FSH caem para níveis baixos. A progesterona começa a subir acentuadamente, seguida por uma elevação secundária do estradiol.

  • Meio da Fase Lútea: A progesterona atinge seu pico. Tanto a progesterona quanto o estradiol estão elevados, exercendo forte feedback negativo sobre o FSH e o LH.

  • Final da Fase Lútea: Com a morte do corpo lúteo, a progesterona e o estradiol caem drasticamente, o que remove o feedback negativo e permite que o FSH comece a se elevar novamente, iniciando um novo ciclo.

Correlatos Clínicos do Ciclo

As flutuações hormonais causam mudanças fisiológicas perceptíveis que podem ser usadas clinicamente.

Temperatura Corporal Basal (TCB)

A progesterona tem um efeito termogênico no centro de controle de temperatura do hipotálamo. Isso causa um aumento sustentado de 0.3 a 0.5°C na TCB durante a fase lútea. Um gráfico de TCB bifásico (com uma fase de baixa temperatura e uma fase de alta temperatura) é uma evidência presuntiva de ovulação.

Muco Cervical

  • Efeito do Estrogênio (Fase Folicular/Periovulatória): O muco torna-se abundante, aquoso, claro, acelular e elástico. Apresenta alta filância (capacidade de se esticar em um fio fino, como "clara de ovo"). Ao secar em uma lâmina, cristaliza em um padrão de "folha de samambaia". Este tipo de muco é favorável à passagem dos espermatozoides.

  • Efeito da Progesterona (Fase Lútea): O muco torna-se escasso, espesso, opaco e celular. Perde a filância e forma uma barreira que dificulta a passagem de espermatozoides e microrganismos.

Síndrome Pré-Menstrual (SPM)

Um conjunto de sintomas físicos, emocionais e comportamentais que ocorrem de forma cíclica durante a fase lútea e se resolvem com o início da menstruação. Acredita-se que seja causada por uma sensibilidade anormal do sistema nervoso central aos metabólitos da progesterona (como a alopregnanolona) em indivíduos suscetíveis.

Fisiopatologia dos Distúrbios Menstruais

Anovulação

A anovulação crônica é uma das causas mais comuns de ciclos irregulares e Sangramento Uterino Anormal (SUA). Na ausência de ovulação, não há formação de corpo lúteo e, consequentemente, não há produção de progesterona. Isso resulta em:

  • Estimulação estrogênica sem oposição: O endométrio prolifera continuamente sob o efeito do estrogênio.

  • Endométrio frágil e instável: Sem o suporte da progesterona, o endométrio espessado torna-se mal vascularizado e instável, levando a um sangramento irregular, imprevisível e muitas vezes intenso (sangramento por disrupção estrogênica).

  • Aumento do risco de hiperplasia e câncer de endométrio a longo prazo.

Deficiência da Fase Lútea

Refere-se a uma produção inadequada de progesterona pelo corpo lúteo. Isso pode levar a uma maturação endometrial insuficiente, dificultando a implantação do embrião e sendo uma causa potencial de infertilidade e abortamento de repetição.

Sistema de Classificação PALM-COEIN para SUA

Este sistema da FIGO é a abordagem padrão para classificar as causas de Sangramento Uterino Anormal em mulheres não grávidas em idade reprodutiva. É um mnemônico que organiza as causas em estruturais (PALM) e não estruturais (COEIN).

Categoria

Causa

Descrição

PALM
(Causas Estruturais)

Pólipo

Crescimentos endometriais ou endocervicais benignos.

Adenomiose

Presença de tecido endometrial (glândulas e estroma) dentro do miométrio.

Leiomioma

Tumores benignos de músculo liso do útero (miomas), especialmente os submucosos.

Malignidade e Hiperplasia

Câncer ou pré-câncer do endométrio, geralmente associado à estimulação estrogênica sem oposição.

COEIN
(Causas Não Estruturais)

Coagulopatia

Distúrbios de coagulação sistêmicos (ex: Doença de von Willebrand).

Ovulatória (Disfunção)

Anovulação ou oligo-ovulação (ex: SOP, hipotireoidismo, hiperprolactinemia). A causa mais comum de SUA.

Endometrial

Causa primária no endométrio, geralmente um diagnóstico de exclusão (ex: endometrite crônica).

Iatrogênica

Causada por intervenção médica (ex: DIU, anticoagulantes, hormônios).

Não classificada

Causas raras ou mal definidas.

Armadilhas do ENARE

As questões frequentemente exigem que o candidato diferencie as causas de SUA. Lembre-se da regra geral: o grupo PALM refere-se a alterações anatômicas/estruturais, geralmente diagnosticadas por métodos de imagem (como ultrassonografia transvaginal). O grupo COEIN refere-se a desordens funcionais/sistêmicas, diagnosticadas principalmente por história clínica, exames laboratoriais e exclusão de causas estruturais. A disfunção ovulatória (O) é a causa não estrutural mais comum.
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