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Cancro Mole (Cancroide)

Introdução e Epidemiologia

O Cancro Mole, também conhecido como cancroide ou úlcera mole venérea, é uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST) causada pela bactéria cocobacilar Gram-negativa Haemophilus ducreyi. Caracteriza-se classicamente pela presença de úlceras genitais múltiplas e dolorosas, frequentemente acompanhadas de linfadenopatia inguinal supurativa, conhecida como "bubão".

Embora sua incidência tenha diminuído globalmente, o cancro mole permanece endêmico em certas regiões do mundo, especialmente em países tropicais e subtropicais da África, Ásia e Caribe. A sua prevalência está fortemente associada a fatores socioeconômicos, como pobreza, baixos níveis de escolaridade e acesso limitado a serviços de saúde. Populações-chave, como profissionais do sexo e seus clientes, representam grupos de maior vulnerabilidade.

Uma das características epidemiológicas mais importantes do cancro mole é sua forte associação com a transmissão do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV). A presença de úlceras genitais, que representam uma quebra na barreira mucocutânea, aumenta significativamente o risco de aquisição e transmissão do HIV em até 10 vezes. A lesão ulcerada serve como uma porta de entrada para o vírus e, ao mesmo tempo, o processo inflamatório local recruta células T CD4+, que são o principal alvo do HIV.

Fisiopatologia

A infecção por H. ducreyi inicia-se com a inoculação da bactéria em microabrasões na pele ou mucosa genital durante o contato sexual. O período de incubação é curto, geralmente de 3 a 7 dias.

Após a entrada, a bactéria adere às células epiteliais e libera uma série de fatores de virulência, sendo o principal a Toxina Citodistensora Letal (CDT - Cytolethal Distending Toxin). Esta toxina induz a parada do ciclo celular e a apoptose (morte celular programada) das células epiteliais, levando à destruição tecidual e à formação da úlcera característica.

A resposta do hospedeiro é uma intensa reação inflamatória, com recrutamento maciço de neutrófilos, macrófagos e linfócitos para o local. Essa resposta inflamatória é responsável por várias características clínicas da doença:

  • Dor intensa: A exposição de terminações nervosas na base da úlcera e a liberação de mediadores inflamatórios causam dor significativa.
  • Exsudato purulento: O acúmulo de neutrófilos mortos, detritos celulares e bactérias forma o exsudato amarelo-acinzentado no leito da úlcera.
  • Base mole: A ausência de uma reação fibrótica e de endarterite obliterante (típicas da sífilis) resulta em uma base não endurecida à palpação.
  • Bubão inguinal: As bactérias podem se disseminar pelos vasos linfáticos até os linfonodos inguinais. A intensa resposta inflamatória dentro do linfonodo leva à necrose e liquefação, formando um abscesso doloroso (bubão).

Apresentação Clínica e Exame Físico

A apresentação clínica do cancro mole é bastante característica. Após um curto período de incubação, surge uma pápula inflamatória no local da inoculação, que rapidamente evolui para uma pústula e, em 24 a 48 horas, rompe-se para formar a úlcera.

Características da Úlcera:

  • Número: Frequentemente múltiplas, devido à autoinoculação ("lesões em espelho" ou "beijo"). Pode iniciar como uma lesão única.
  • Dor: Altamente dolorosa à palpação. Esta é uma característica chave que a diferencia do cancro duro da sífilis.
  • Profundidade: Profunda, com bordas bem definidas, irregulares e solapadas (minadas).
  • Base: Mole, não endurecida.
  • Leito: Coberto por um exsudato necrótico, purulento, de coloração amarelo-acinzentada, que sangra facilmente ao ser raspado.

Nos homens, as localizações mais comuns são o prepúcio, o sulco coronal e o freio. Nas mulheres, as lesões são mais frequentes nos grandes e pequenos lábios, fúrcula vaginal e períneo. Lesões no colo do útero e na parede vaginal são menos comuns e podem passar despercebidas devido à menor sensibilidade local.

Linfadenopatia Inguinal (Bubão):

Ocorre em cerca de 50% dos casos, geralmente uma a duas semanas após o surgimento da úlcera. Suas características são:

  • Unilateralidade: Geralmente afeta apenas um lado da virilha.
  • Dor: Extremamente dolorosa, com eritema e edema sobrejacentes.
  • Evolução: Os linfonodos coalescem, formando uma massa única e flutuante (liquefação). Se não tratado, o bubão pode romper espontaneamente, drenando material purulento através de um único orifício, aspecto conhecido como "bico de jaleira".

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2022, Q73)

O diagnóstico clínico de cancro mole é fortemente sugerido pela combinação de úlcera genital dolorosa com base purulenta (mole) e a presença de linfonodomegalia inguinal dolorosa e supurativa (bubão). A presença desses três elementos em um paciente de área endêmica ou com comportamento de risco é praticamente diagnóstica e justifica o tratamento empírico.

Diagnóstico

O diagnóstico do cancro mole é predominantemente clínico, especialmente em cenários com recursos limitados. A confirmação laboratorial é desafiadora e raramente realizada na prática clínica rotineira.

Critérios Clínicos para Diagnóstico (CDC):

O diagnóstico provável de cancro mole pode ser feito se todos os seguintes critérios forem atendidos:

  1. O paciente apresenta uma ou mais úlceras genitais dolorosas.
  2. A apresentação clínica das úlceras e da linfadenopatia regional é típica para cancro mole.
  3. Não há evidência de Treponema pallidum na microscopia de campo escuro da úlcera ou em teste sorológico para sífilis (realizado pelo menos 7 dias após o início da úlcera).
  4. Um teste para Herpes Simples (HSV), como cultura viral ou PCR da úlcera, é negativo.

Métodos Laboratoriais:

  • Bacterioscopia (Coloração de Gram): A coleta de material do fundo da úlcera pode revelar os cocobacilos Gram-negativos arranjados em cadeias paralelas, com uma aparência descrita como "cardume de peixes" ou "trilho de trem". No entanto, a sensibilidade deste método é muito baixa (<50%).
  • Cultura: É o método diagnóstico definitivo, mas o H. ducreyi é uma bactéria fastidiosa, exigindo meios de cultura especiais (e.g., Ágar chocolate enriquecido com vancomicina) que não estão amplamente disponíveis. A sensibilidade é de cerca de 75%.
  • Testes de Amplificação de Ácidos Nucleicos (NAATs): A PCR (Reação em Cadeia da Polimerase) é o teste mais sensível e específico, considerado o padrão-ouro. Contudo, sua disponibilidade é restrita a centros de pesquisa e laboratórios de referência.

Raciocínio Clínico

Na prática, diante de uma úlcera genital, a abordagem sindrômica preconizada pelo Ministério da Saúde do Brasil é a mais comum. O médico deve realizar testes para as causas mais prevalentes e tratáveis, principalmente sífilis e herpes. Se a úlcera é dolorosa e os testes para sífilis e herpes são negativos, o tratamento empírico para cancro mole está indicado, especialmente se houver um bubão associado.

Diagnóstico Diferencial de Úlceras Genitais

A diferenciação entre as causas de úlceras genitais é um tópico clássico de provas de residência.

Característica Cancro Mole Sífilis Primária (Cancro Duro) Herpes Genital Linfogranuloma Venéreo (LGV) Donovanose
Agente H. ducreyi T. pallidum HSV-1 ou HSV-2 C. trachomatis (L1-L3) K. granulomatis
Incubação 3-7 dias 10-90 dias (média 21) 2-12 dias 3-30 dias 30-180 dias
Lesão Úlcera profunda Úlcera superficial Vesículas/Úlceras múltiplas Pápula/Úlcera transitória Úlcera vegetante, friável
Dor Muito dolorosa Indolor Dolorosa Indolor e fugaz Indolor
Número Múltiplas (geralmente) Única (geralmente) Múltiplas, agrupadas Única, pequena Única ou múltiplas
Bordas Irregulares, solapadas Regulares, elevadas Eritematosas - Planas ou hipertróficas
Base Mole, purulenta Dura (cartilagínea), limpa Eritematosa - Vermelho vivo, aspecto de "carne viva"
Adenopatia Unilateral, supurativa (bubão), dolorosa Bilateral, não supurativa, indolor, móvel Bilateral, dolorosa, não supurativa Unilateral, supurativa, dolorosa, com múltiplos orifícios de drenagem ("bico de regador") Ausente (pseudo-bubões podem ocorrer)

Tratamento e Manejo

O tratamento do cancro mole é altamente eficaz com os antibióticos apropriados. Os esquemas recomendados pelo Ministério da Saúde do Brasil e pelo CDC visam a erradicação da bactéria e a resolução dos sintomas.

Esquemas Terapêuticos Recomendados:

  • Primeira Linha (Dose Única):
    • Azitromicina: 1 g, via oral, em dose única. (Esquema preferencial pela comodidade).
    • Ceftriaxona: 250 mg, via intramuscular, em dose única.
  • Esquemas Alternativos (Múltiplas Doses):
    • Eritromicina (estearato): 500 mg, via oral, de 6 em 6 horas, por 7 dias.
    • Ciprofloxacino: 500 mg, via oral, de 12 em 12 horas, por 3 dias. (Contraindicado em gestantes e lactantes).

Manejo do Bubão Inguinal:

O tratamento do bubão depende do seu estágio evolutivo.

  • Bubões não flutuantes (endurecidos): Geralmente respondem apenas à antibioticoterapia sistêmica.
  • Bubões flutuantes (com liquefação): Requerem drenagem para alívio da dor e para evitar a ruptura espontânea. A técnica de escolha é a aspiração por agulha, que pode ser repetida se necessário. A incisão e drenagem cirúrgica deve ser evitada, pois pode levar à formação de fístulas crônicas e retardar a cicatrização.

Armadilhas do ENARE

Uma questão pode apresentar um paciente com cancro mole e um bubão flutuante. As opções de manejo podem incluir "Incisão e Drenagem" e "Aspiração por Agulha". A resposta correta é a aspiração. A incisão é considerada uma medida de exceção, pois o risco de complicações (fístulas) é maior.

Seguimento:

Os pacientes devem ser reavaliados em 3 a 7 dias após o início do tratamento. A melhora da dor costuma ocorrer em 48 horas. A cicatrização completa da úlcera pode levar até 2 semanas, dependendo do tamanho inicial. A resolução do bubão é mais lenta. Se não houver melhora, deve-se considerar: falha terapêutica (resistência), diagnóstico incorreto, coinfecção com outra IST ou não adesão ao tratamento.

Complicações e Prognóstico

Quando tratado adequadamente, o prognóstico do cancro mole é excelente. No entanto, se o tratamento for tardio ou inadequado, podem ocorrer complicações:

  • Cicatrizes extensas: Lesões grandes podem deixar cicatrizes permanentes.
  • Fimose e parafimose: Podem ocorrer devido ao edema e fibrose no prepúcio.
  • Fístulas uretrais: Complicação rara, resultante da destruição tecidual extensa.
  • Ruptura do bubão: Drenagem espontânea com formação de úlcera crônica na região inguinal.

A complicação mais significativa em termos de saúde pública é o aumento do risco de transmissão do HIV. O tratamento eficaz do cancro mole é uma estratégia importante para a prevenção do HIV em populações de alta prevalência.

Populações Especiais

Pacientes Coinfectados com HIV:

Pacientes com HIV, especialmente aqueles com imunossupressão avançada (CD4 baixo), podem ter uma resposta mais lenta ao tratamento. Nesses casos, pode ocorrer:

  • Maior taxa de falha terapêutica com esquemas de dose única.
  • Cicatrização mais lenta das úlceras.
  • Apresentação com úlceras maiores ou mais numerosas.

O seguimento clínico deve ser mais rigoroso. Embora os esquemas de tratamento sejam os mesmos, alguns especialistas recomendam preferir os regimes de múltiplos dias (e.g., eritromicina) ou um acompanhamento mais próximo para garantir a resolução completa.

Gestantes e Lactantes:

O tratamento de escolha para gestantes é com Azitromicina ou Ceftriaxona. A Eritromicina também é considerada segura. O Ciprofloxacino (uma fluoroquinolona) é contraindicado devido ao risco de artropatia no feto/neonato.

Manejo de Parceiros Sexuais:

É fundamental para o controle da disseminação da doença. Todos os parceiros sexuais que tiveram contato com o paciente nos 10 dias anteriores ao início dos sintomas devem ser examinados e tratados, independentemente da presença de sintomas. Esta abordagem previne a reinfecção do paciente e a transmissão contínua na comunidade.

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