Câncer de Endométrio
O câncer de endométrio é a neoplasia maligna originada do epitélio glandular que reveste a cavidade uterina. Representa a neoplasia ginecológica mais comum em países desenvolvidos e a segunda mais comum no Brasil, atrás apenas do câncer de colo de útero. Sua incidência tem aumentado globalmente, em grande parte devido ao aumento da expectativa de vida e da prevalência da obesidade.
Introdução & Epidemiologia
A epidemiologia do câncer de endométrio é marcada por uma forte associação com fatores hormonais e metabólicos. A idade é um fator de risco primordial, com a grande maioria dos casos (cerca de 75%) ocorrendo em mulheres na pós-menopausa. A idade média ao diagnóstico situa-se entre 60 e 70 anos.
A distribuição etária é classicamente descrita como bimodal, embora o segundo pico seja muito mais proeminente:
- Primeiro pico (menor): Ocorre em mulheres mais jovens, na perimenopausa ou pré-menopausa, frequentemente associado a condições de anovulação crônica (como a Síndrome dos Ovários Policísticos - SOP) ou predisposição genética (Síndrome de Lynch).
- Segundo pico (maior): Ocorre em mulheres na pós-menopausa, sendo este o grupo de maior incidência.
No Brasil, segundo dados do Instituto Nacional de Câncer (INCA), o câncer de corpo de útero (que inclui predominantemente o câncer de endométrio) é uma neoplasia significativa. As taxas de incidência e mortalidade variam regionalmente, sendo mais elevadas nas regiões Sul e Sudeste, o que pode refletir diferenças no estilo de vida, acesso a diagnóstico e perfil demográfico.
Fisiopatologia
A compreensão da fisiopatologia do câncer de endométrio é fundamental e classicamente dividida em dois tipos distintos, com base em suas características clínicas, histológicas e moleculares.
Classificação Fisiopatológica: Tipo I vs. Tipo II
Esta divisão, proposta por Bokhman em 1983, continua sendo um pilar para o entendimento da doença.
| Característica | Câncer de Endométrio Tipo I | Câncer de Endométrio Tipo II |
|---|---|---|
| Dependência de Estrogênio | Estrogênio-dependente (associado à exposição estrogênica sem oposição) | Estrogênio-independente (surge em endométrio atrófico) |
| Frequência | ~80% dos casos | ~10-20% dos casos |
| Histologia Principal | Endometrioide (bem diferenciado, Graus 1 e 2) | Não-endometrioide (seroso, células claras, carcinossarcoma) |
| Lesão Precursora | Hiperplasia endometrial atípica | Carcinoma intraepitelial endometrial (EIC) |
| Perfil da Paciente | Mulheres mais jovens (perimenopausa), obesas, com comorbidades (DM, HAS) | Mulheres mais velhas, magras, multíparas |
| Alterações Genéticas Comuns | Mutações no PTEN, KRAS, PIK3CA; instabilidade de microssatélites | Mutações no p53; aneuploidia |
| Prognóstico | Favorável, geralmente diagnosticado em estágios iniciais | Desfavorável, comportamento agressivo, diagnóstico em estágios avançados |
Papel da Exposição Estrogênica Não Oposta (Tipo I)
O mecanismo central do câncer tipo I é a proliferação contínua do endométrio estimulada pelo estrogênio, sem a ação contrarregulatória e maturativa da progesterona. A progesterona normalmente induz a diferenciação do endométrio e, ao ser retirada, causa a descamação menstrual. Na ausência dessa oposição, o endométrio passa por um processo contínuo de proliferação que pode evoluir para hiperplasia e, finalmente, para carcinoma.
Fontes de estrogênio não oposto incluem:
- Endógenas:
- Obesidade: O tecido adiposo periférico, especialmente o visceral, contém a enzima aromatase, que converte androgênios (androstenediona) em estrogênios (estrona). Este é o fator de risco mais importante em países desenvolvidos.
- Anovulação Crônica: Condições como a Síndrome dos Ovários Policísticos (SOP) e a perimenopausa cursam com ciclos anovulatórios, nos quais não há formação de corpo lúteo e, consequentemente, não há produção de progesterona.
- Tumores Ovarianos Produtores de Estrogênio: Como os tumores de células da granulosa.
- Menarca Precoce e Menopausa Tardia: Aumentam a janela de tempo de exposição do endométrio ao estrogênio ao longo da vida.
- Nuliparidade: A gestação é um estado de dominância progestagênica, sendo, portanto, protetora.
- Exógenas:
- Terapia de Reposição Hormonal (TRH) apenas com estrogênio: Em mulheres com útero, a TRH deve sempre conter um progestágeno para proteger o endométrio.
- Tamoxifeno: Usado no tratamento do câncer de mama, atua como um antiestrogênico na mama, mas tem um efeito agonista (estrogênico) fraco no endométrio, aumentando o risco de pólipos, hiperplasia e câncer.
Armadilhas do ENARE: Conceito-Chave Validado (ENARE 2020)
A questão ENARE 2020 Q78 abordou diretamente os fatores de risco para o câncer de endométrio. É imperativo que o candidato reconheça a tríade Obesidade, Diabetes Mellitus e Hipertensão Arterial (conhecida como Síndrome de Lynch metabólica ou Síndrome de Corpo de Útero) como um perfil clássico da paciente com câncer de endométrio tipo I. A fisiopatologia central é a estimulação estrogênica crônica sem oposição da progesterona, decorrente da conversão periférica de androgênios em estrona no tecido adiposo e dos ciclos anovulatórios frequentes nessas pacientes.
Fatores Genéticos e Hereditários
A predisposição genética mais importante para o câncer de endométrio é a Síndrome de Lynch, também conhecida como Câncer Colorretal Hereditário Não Poliposo (HNPCC). É uma condição autossômica dominante causada por mutações em genes de reparo do DNA (mismatch repair genes - MMR), como MLH1, MSH2, MSH6 e PMS2.
- Mulheres com Síndrome de Lynch têm um risco vitalício de desenvolver câncer de endométrio de 40-60%, que é igual ou até maior que o risco de câncer colorretal.
- O câncer de endométrio é frequentemente a primeira manifestação da síndrome em mulheres.
- O rastreamento em portadoras da mutação geralmente envolve biópsias endometriais anuais a partir dos 30-35 anos. A histerectomia e salpingo-ooforectomia bilateral profilática é recomendada após a prole constituída.
Apresentação Clínica e Exame Físico
O sintoma cardinal e mais comum do câncer de endométrio é o sangramento uterino anormal. A forma de apresentação depende do status menopausal da paciente.
Manifestações Clínicas
- Sangramento na Pós-Menopausa: Este é o sinal de alerta clássico, presente em mais de 90% das pacientes na pós-menopausa.
Raciocínio Clínico
A máxima da ginecologia que deve ser memorizada para qualquer prova é: "Sangramento na pós-menopausa é câncer de endométrio até que se prove o contrário". Embora a causa mais comum de sangramento pós-menopausa seja a atrofia endometrial, a possibilidade de malignidade deve ser exaustivamente investigada e excluída em todas as pacientes.
- Sangramento Uterino Anormal na Perimenopausa e Pré-Menopausa: Mulheres mais jovens podem apresentar quadros de sangramento intermenstrual, menorragia (aumento do fluxo) ou metrorragia (sangramento irregular). Em mulheres com fatores de risco (obesidade, SOP), um limiar baixo para investigação é crucial.
- Sintomas Avançados (menos comuns): Em estágios mais avançados da doença, podem ocorrer dor pélvica, pressão pélvica, corrimento vaginal purulento ou sanguinolento (piometra ou hematometra), ou uma massa pélvica palpável. Sintomas sistêmicos como perda de peso são raros e indicam doença metastática.
Exame Físico
O exame físico geral e ginecológico pode ser completamente normal, especialmente em estágios iniciais.
- Exame Abdominal: Geralmente normal. Uma massa palpável pode sugerir um útero muito aumentado ou doença metastática.
- Exame Especular: Pode revelar um colo do útero normal, com sangramento ativo proveniente do orifício cervical externo. Ocasionalmente, o tumor pode se exteriorizar pelo colo.
- Toque Vaginal Bimanual: O útero pode ter tamanho, forma e consistência normais. Em alguns casos, pode estar aumentado de volume e amolecido. A fixação do útero ou a presença de massas anexiais podem indicar extensão extrauterina da doença.
Investigação Diagnóstica
A abordagem diagnóstica é sequencial, iniciando com métodos menos invasivos e progredindo para a confirmação histopatológica.
Ultrassonografia Transvaginal (USTV)
É o primeiro passo na avaliação de uma mulher com sangramento uterino anormal, especialmente na pós-menopausa. O principal objetivo é medir a espessura do eco endometrial (a medida da dupla camada do endométrio).
- Em mulheres na pós-menopausa:
- Um endométrio fino, com espessura ≤ 4-5 mm, tem um altíssimo valor preditivo negativo (VPN > 99%) para câncer de endométrio. Nessas pacientes, se o sangramento cessa, a conduta pode ser expectante. Se o sangramento persiste, a investigação deve prosseguir.
- Um endométrio espessado (> 4-5 mm), heterogêneo ou com coleção líquida intracavitária exige investigação histopatológica.
- Em mulheres na pré-menopausa: A espessura endometrial varia com a fase do ciclo menstrual. Portanto, não há um ponto de corte bem estabelecido. A USTV é mais útil para identificar anormalidades estruturais (pólipos, miomas) do que para excluir câncer. A investigação histopatológica é indicada com base na clínica e nos fatores de risco, independentemente do achado ultrassonográfico.
Amostragem Endometrial (Diagnóstico Definitivo)
A confirmação diagnóstica requer a obtenção de tecido endometrial para análise histopatológica.
- Biópsia Endometrial Ambulatorial (Pipelle): É o método de primeira linha. Trata-se de um procedimento realizado no consultório, sem necessidade de anestesia ou dilatação cervical. Uma cânula fina e flexível (pipeta de Pipelle) é inserida na cavidade uterina para aspirar fragmentos do endométrio. Possui alta sensibilidade (>90%) para detectar câncer de endométrio. Um resultado negativo em uma paciente de alto risco com sangramento persistente não exclui a doença e exige investigação adicional.
- Histeroscopia com Biópsia Dirigida e Curetagem: É considerado o padrão-ouro. A histeroscopia permite a visualização direta da cavidade endometrial, identificando a localização e a extensão de lesões suspeitas (pólipos, áreas focais de espessamento) e permitindo a realização de biópsias dirigidas. A curetagem uterina pode ser realizada em seguida para obter mais material. É o método de escolha quando a biópsia ambulatorial é negativa ou inconclusiva, ou quando a USTV sugere uma lesão focal.
Armadilhas do ENARE: Conceito-Chave Validado (ENARE 2023)
A questão ENARE 2023 Q80 testou o conhecimento sobre a conduta frente a uma paciente na pós-menopausa com sangramento e endométrio espessado (>4 mm) na ultrassonografia. A resposta correta é a investigação com histeroscopia diagnóstica com biópsia dirigida. Este é o método padrão-ouro para o diagnóstico, pois permite a visualização direta da cavidade e a coleta de material da área mais suspeita, superando a biópsia às cegas (Pipelle ou curetagem isolada), que pode não atingir uma lesão focal.
Estadiamento Pré-operatório
O estadiamento do câncer de endométrio é primariamente cirúrgico. No entanto, exames de imagem podem ser úteis no planejamento terapêutico em casos de doença de alto risco (histologia tipo II, tumores pouco diferenciados) ou suspeita de doença avançada.
- Ressonância Magnética (RM) de Pelve: É o melhor método para avaliar a profundidade da invasão miometrial e a extensão para o colo uterino, informações cruciais para o planejamento cirúrgico.
- Tomografia Computadorizada (TC) de Tórax, Abdome e Pelve: Utilizada para avaliar a presença de metástases linfonodais (pélvicas e para-aórticas) e à distância (fígado, pulmões).
Tratamento e Manejo
O tratamento do câncer de endométrio é centrado na cirurgia, que serve tanto para o tratamento quanto para o estadiamento definitivo da doença. Terapias adjuvantes são indicadas com base nos achados cirúrgico-patológicos.
Tratamento Cirúrgico (Estadiamento)
O procedimento padrão para o câncer de endométrio aparentemente confinado ao útero é a Histerectomia Total com Salpingo-ooforectomia Bilateral (HT + SOB). A via de acesso pode ser abdominal (laparotomia), vaginal, laparoscópica ou robótica, sendo as abordagens minimamente invasivas preferíveis quando exequíveis.
O estadiamento cirúrgico completo (segundo a FIGO - Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia) inclui:
- Lavado Peritoneal: Coleta de líquido da cavidade pélvica e abdominal para análise citológica.
- Histerectomia Total Extrafascial.
- Salpingo-ooforectomia Bilateral.
- Avaliação Linfonodal: Este é um ponto crítico. A avaliação dos linfonodos pélvicos e para-aórticos é essencial para o estadiamento e para guiar a terapia adjuvante. As abordagens incluem:
- Linfadenectomia Pélvica e Para-aórtica Sistemática: Remoção completa dos linfonodos nessas cadeias.
- Biópsia de Linfonodo Sentinela (BLS): Técnica mais moderna onde um corante (azul patente) ou um radiotraçador (tecnécio-99m) é injetado no colo do útero para identificar o primeiro linfonodo de drenagem (o sentinela). Se o sentinela for negativo, a chance de outros linfonodos estarem acometidos é muito baixa, evitando-se uma linfadenectomia completa e suas morbidades (ex: linfedema).
Terapia Adjuvante
Após a cirurgia, a decisão de indicar radioterapia e/ou quimioterapia baseia-se nos fatores de risco para recorrência, identificados no laudo histopatológico final.
- Fatores de Risco: Estágio FIGO, tipo histológico (Tipo II é de alto risco), grau de diferenciação tumoral, profundidade da invasão miometrial, invasão do espaço linfovascular (IELV).
- Radioterapia (RT):
- Braquiterapia Vaginal: Irradiação localizada na cúpula vaginal. Reduz o risco de recorrência local (na vagina) em pacientes de risco intermediário a alto.
- Radioterapia Pélvica Externa: Irradiação de toda a pelve. Indicada para pacientes de alto risco, como aquelas com linfonodos positivos ou invasão profunda.
- Quimioterapia (QT): Geralmente à base de platina (carboplatina) e taxano (paclitaxel). Indicada para doença em estágio avançado (III e IV), histologias de alto risco (seroso, células claras) ou doença recorrente.
Manejo da Doença Avançada ou Recorrente
O tratamento envolve uma abordagem multimodal com quimioterapia, hormonioterapia (para tumores positivos para receptores hormonais), terapia-alvo e, mais recentemente, imunoterapia (inibidores de checkpoint, como o pembrolizumabe, especialmente para tumores com instabilidade de microssatélites).
Complicações e Prognóstico
Complicações do Tratamento
- Cirúrgicas: Hemorragia, infecção, lesão de bexiga, ureter ou intestino, tromboembolismo venoso. A longo prazo, a principal complicação da linfadenectomia é o linfedema de membros inferiores.
- Radioterapia: Cistite e proctite actínicas (agudas ou crônicas), estenose vaginal, secura vaginal.
- Quimioterapia: Mielossupressão, náuseas, vômitos, alopecia, neuropatia periférica.
Prognóstico
O prognóstico do câncer de endométrio é geralmente bom, pois a maioria dos casos (Tipo I) é diagnosticada em estágios iniciais (confinados ao útero), com taxas de sobrevida em 5 anos superiores a 90% para o Estágio I.
Os fatores prognósticos mais importantes são:
- Estágio FIGO: O fator mais importante. A sobrevida cai drasticamente com o avanço do estágio.
- Tipo Histológico: Tumores não-endometrioides (Tipo II) têm prognóstico muito pior.
- Grau de Diferenciação Tumoral: Tumores pouco diferenciados (Grau 3) são mais agressivos.
- Profundidade da Invasão Miometrial: Quanto mais profundo o tumor invade a parede uterina, maior o risco de metástases linfonodais.
- Invasão do Espaço Linfovascular (IELV): Forte preditor de metástases linfonodais e recorrência.
- Status Linfonodal: A presença de metástases em linfonodos é um dos piores fatores prognósticos.
Populações Especiais
Manejo com Preservação da Fertilidade
Em um grupo altamente selecionado de mulheres jovens que desejam engravidar, um tratamento conservador pode ser considerado. Os critérios de elegibilidade são rigorosos:
- Desejo de preservar a fertilidade.
- Adenocarcinoma endometrioide bem diferenciado (Grau 1).
- Doença presumivelmente confinada ao endométrio (Estágio IA), avaliada por RM.
- Ausência de contraindicações para terapia hormonal.
- Aconselhamento completo sobre os riscos e taxas de sucesso.
O tratamento consiste em terapia com altas doses de progestágenos (acetato de megestrol ou acetato de medroxiprogesterona oral) ou um DIU liberador de levonorgestrel. O acompanhamento é intensivo, com biópsias endometriais a cada 3-6 meses. Após a obtenção de uma resposta completa (reversão para endométrio normal), a paciente é encorajada a tentar engravidar o mais breve possível. A histerectomia é recomendada após a conclusão da prole.
Manejo em Pacientes Idosas ou com Comorbidades Graves
Para pacientes que são candidatas cirúrgicas inadequadas devido a comorbidades médicas graves, opções não cirúrgicas podem ser utilizadas.
- Radioterapia Primária (Braquiterapia e/ou RT externa): Pode oferecer controle local da doença com intenção curativa.
- Hormonioterapia Primária: Terapia com progestágenos pode ser usada em tumores de baixo grau com receptores hormonais positivos.
- Cuidados Paliativos: Para controle de sintomas como sangramento em pacientes com doença avançada e sem condições de tratamento curativo.
