Ameaça de Abortamento / Hematoma Retrocoriônico
A ameaça de abortamento é a causa mais comum de sangramento vaginal na primeira metade da gestação e uma queixa frequente nos serviços de emergência obstétrica. Embora muitas vezes benigna, a condição gera ansiedade significativa para a paciente e exige uma avaliação cuidadosa para confirmar a viabilidade da gestação, excluir diagnósticos diferenciais graves como a gravidez ectópica, e estabelecer um prognóstico.
Introdução e Epidemiologia
O sangramento vaginal no primeiro trimestre ocorre em aproximadamente 20-25% de todas as gestações clinicamente reconhecidas. Dentre estas, cerca de metade evoluirá para um abortamento espontâneo, enquanto a outra metade prosseguirá, embora com riscos aumentados para complicações futuras.
Definições
- Ameaça de Abortamento (ou Abortamento Iminente): É definida pela presença de sangramento vaginal de origem intrauterina que ocorre antes de 20 semanas completas de gestação, na presença de uma gravidez intrauterina viável confirmada (com atividade cardíaca fetal presente) e um colo uterino fechado ao exame especular.
- Hematoma Subcoriônico (ou Retrocoriônico): Refere-se a uma coleção de sangue localizada entre a membrana coriônica e a parede uterina (decídua). É a anormalidade ultrassonográfica mais comum associada ao sangramento do primeiro trimestre, sendo identificado em até 18% das pacientes com ameaça de abortamento.
A prevalência do hematoma subcoriônico em gestações assintomáticas é menor, em torno de 1-3%, mas sua identificação é clinicamente relevante devido à sua associação com desfechos gestacionais adversos.
Fisiopatologia
A fisiopatologia exata da ameaça de abortamento e do hematoma subcoriônico nem sempre é clara, mas acredita-se que envolva processos relacionados à implantação e à integridade da interface materno-fetal.
- Ameaça de Abortamento: O sangramento é frequentemente atribuído a uma pequena disrupção dos vasos deciduais na periferia da placenta durante o processo de implantação e crescimento do trofoblasto. Na maioria dos casos em que a gestação prossegue, essa disrupção é autolimitada e não compromete a viabilidade placentária. Em outros casos, pode ser o sinal inicial de um processo que levará a um abortamento espontâneo, refletindo uma anormalidade cromossômica subjacente no embrião ou uma insuficiência do corpo lúteo.
- Hematoma Subcoriônico: Acredita-se que o mecanismo seja a separação das membranas coriônicas da decídua uterina, resultando na ruptura de pequenas veias ou arteríolas espiraladas. Isso leva ao acúmulo de sangue nesse espaço potencial. A causa dessa separação pode ser multifatorial, incluindo implantação anormal, malformações uterinas ou processos inflamatórios locais.
Raciocínio Clínico
Por que o sangramento ocorre? A interface entre o córion frondoso (a futura placenta) e a decídua uterina é uma zona de intensa atividade vascular e invasão celular. Qualquer pequena instabilidade ou ruptura de vasos nessa região pode levar a um sangramento que, ao dissecar seu caminho até o colo uterino, se manifesta clinicamente. A presença de um hematoma indica um sangramento mais significativo que ficou represado, em vez de ser imediatamente exteriorizado.
Apresentação Clínica e Exame Físico
O quadro clínico é característico, mas deve ser cuidadosamente avaliado para excluir outras causas de sangramento e dor na gestação inicial.
Sintomas
- Sangramento Vaginal: É o sintoma cardinal. A quantidade é variável, desde um "borrão" (spotting) de coloração acastanhada até um sangramento vermelho vivo, de volume semelhante a uma menstruação leve a moderada. Sangramento intenso, com coágulos, é um sinal de pior prognóstico.
- Dor Pélvica: Geralmente ausente ou presente como uma cólica leve e intermitente no hipogástrio ou região lombar, similar a uma cólica menstrual. Dor intensa, persistente ou unilateral deve levantar suspeita para outros diagnósticos, como gravidez ectópica.
Exame Físico
O exame físico é fundamental para estabelecer o diagnóstico e a estabilidade da paciente.
- Avaliação Geral: Verificar sinais vitais para avaliar a estabilidade hemodinâmica. Hipotensão e taquicardia são incomuns na ameaça de abortamento e sugerem sangramento volumoso ou diagnóstico alternativo.
- Exame Abdominal: O abdome geralmente é flácido e indolor à palpação. Dor à descompressão brusca ou sinais de peritonite são altamente sugestivos de gravidez ectópica rota.
- Exame Especular: É a etapa mais importante.
- Visualização do Colo Uterino: O achado chave é um orifício cervical interno fechado.
- Origem do Sangramento: Confirma que o sangramento provém do canal cervical, descartando causas locais como pólipos, lesões cervicais ou lacerações vaginais.
- Observação: Não se deve observar restos ovulares no canal cervical.
- Toque Vaginal Bimanual:
- Tamanho Uterino: O útero deve ter um tamanho compatível com a idade gestacional calculada.
- Sensibilidade: O útero geralmente é indolor ou levemente sensível. Dor excessiva à palpação uterina ou à mobilização do colo uterino (Sinal de Proust) é um sinal de alerta para gravidez ectópica.
- Anexos: Não devem ser palpadas massas anexiais.
Avaliação Diagnóstica
A ultrassonografia transvaginal é o pilar da avaliação diagnóstica, complementada em alguns casos por dosagens hormonais.
Ultrassonografia Transvaginal (USG-TV)
A USG-TV é o exame de escolha e deve ser realizada em todas as pacientes com sangramento na primeira metade da gestação. Seus objetivos são:
- Confirmar a Localização da Gravidez: Identificar um saco gestacional tópico (dentro da cavidade uterina), descartando uma gravidez ectópica.
- Avaliar a Viabilidade Fetal: O achado mais importante é a visualização do embrião com batimentos cardíacos fetais (BCF) presentes. A presença de BCF confere um prognóstico muito favorável, com a taxa de continuidade da gestação ultrapassando 90-95%.
- Identificar e Medir o Hematoma Subcoriônico: O hematoma aparece como uma área de ecogenicidade variável (geralmente hipoecoica ou anecoica, em forma de crescente) entre o córion e o miométrio. O tamanho do hematoma é um fator prognóstico importante e pode ser medido em volume (cm³) ou como uma porcentagem do tamanho do saco gestacional. Hematomas grandes (ex: >25-50% do volume do saco gestacional) estão associados a um pior prognóstico.
- Datação da Gestação: A medida do comprimento cabeça-nádega (CCN) do embrião fornece a datação mais acurada da gestação.
Dosagem de Beta-hCG Quantitativo
A dosagem seriada de beta-hCG não é rotineiramente necessária quando a USG-TV já confirmou uma gestação intrauterina viável. Sua principal utilidade é em cenários de incerteza, como em uma gravidez de localização indeterminada (PLI - Pregnancy of Unknown Location), onde a ultrassonografia não consegue visualizar uma gestação intra ou extrauterina.
Tratamento e Manejo
O manejo da ameaça de abortamento e do hematoma subcoriônico é primariamente de suporte e expectante, pois não existem intervenções médicas que comprovadamente alterem o curso da condição.
Conduta Expectante
A base do tratamento é a observação. A paciente é orientada a monitorar o sangramento e a dor e a retornar para reavaliação se houver piora dos sintomas.
- Repouso: Recomenda-se frequentemente o "repouso pélvico" (abstinência sexual) e a redução de atividades físicas intensas. No entanto, é crucial entender que não há evidências científicas robustas de que o repouso no leito ou a restrição de atividades melhorem os desfechos gestacionais. Essas recomendações são feitas com base em princípios fisiológicos teóricos e para o conforto psicológico da paciente.
- Uso de Progestágenos: O uso de progesterona (oral, vaginal ou intramuscular) é controverso. Grandes ensaios clínicos randomizados (como os estudos PRISM e PROMISE) não demonstraram benefício na prevenção de aborto em pacientes com ameaça de abortamento na população geral. Pode haver um pequeno benefício em subgrupos específicos, como mulheres com histórico de abortamento de repetição, mas seu uso rotineiro não é recomendado pelas principais diretrizes.
- Tocolíticos e Outras Medicações: Não há indicação para o uso de agentes tocolíticos, antibióticos ou qualquer outra medicação na ausência de indicações específicas.
Conceito-Chave Validado pelo Exame
ENARE 2020 (Questão 61): A questão abordava o caso de uma paciente com sangramento no primeiro trimestre e diagnóstico de hematoma retrocoriônico. A alternativa correta enfatizava que a conduta é expectante, com orientação e acompanhamento, reforçando que não há tratamento medicamentoso específico com eficácia comprovada para esta condição.
Armadilhas do ENARE
É comum que as questões de prova apresentem opções terapêuticas como "repouso absoluto no leito" ou "uso de progesterona". O candidato deve saber que, embora sejam práticas comuns em alguns cenários clínicos, a evidência científica que as suporta é fraca ou inexistente. A resposta correta para a conduta inicial e principal é sempre manejo expectante e orientação.
Complicações e Prognóstico
Embora a maioria das gestações com ameaça de abortamento prossiga sem intercorrências, a condição é um marcador de risco para desfechos adversos.
Prognóstico
- Continuidade da Gestação: A presença de batimentos cardíacos fetais na ultrassonografia é o fator prognóstico mais favorável. Nesses casos, mais de 90% das gestações continuarão.
- Risco de Abortamento Espontâneo: O risco geral de abortamento após um episódio de ameaça de abortamento é aproximadamente o dobro do da população gestante geral.
Complicações Associadas
Pacientes com diagnóstico de ameaça de abortamento, especialmente na presença de um hematoma subcoriônico grande, têm um risco aumentado para:
- Descolamento Prematuro de Placenta (DPP)
- Trabalho de Parto Prematuro (TPP)
- Ruptura Prematura de Membranas Ovulares (RPMO)
- Restrição de Crescimento Intrauterino (RCIU)
- Pré-eclâmpsia
O tamanho do hematoma é diretamente proporcional ao risco. Hematomas que ocupam mais de 25% do saco gestacional estão associados a um prognóstico significativamente pior.
Populações Especiais e Aconselhamento
O manejo da ameaça de abortamento transcende a avaliação médica e envolve um componente crucial de comunicação e suporte emocional.
Aconselhamento da Paciente
O aconselhamento deve ser claro, empático e realista. Os pontos-chave a serem abordados são:
- Explicar o Diagnóstico: Esclarecer o que significa "ameaça de abortamento" – que é um risco, não uma certeza de perda gestacional. A confirmação da viabilidade fetal na USG é uma notícia tranquilizadora que deve ser enfatizada.
- Discutir a Ausência de Intervenções Eficazes: É fundamental explicar que não há medicação ou intervenção (como o repouso) que possa "segurar" a gravidez. Isso ajuda a manejar as expectativas e a reduzir sentimentos de culpa que a paciente possa ter ("o que eu fiz de errado?").
- Fornecer o Prognóstico: Informar sobre a alta probabilidade de a gestação continuar bem, mas também mencionar os riscos aumentados para que um acompanhamento pré-natal mais atento possa ser planejado.
- Orientar Sinais de Alarme: A paciente deve ser instruída a procurar atendimento médico imediato se apresentar:
- Sangramento intenso: Definido como a saturação de mais de um absorvente por hora por duas horas consecutivas.
- Dor abdominal forte e progressiva.
- Eliminação de tecidos pela vagina.
- Febre ou calafrios.
- Síncope ou pré-síncope.
O suporte psicológico é vital, pois a incerteza e o medo da perda gestacional podem ser emocionalmente devastadores para a paciente e sua família.
