Abortamento
O abortamento, ou aborto espontâneo, é a interrupção não induzida da gestação. É a complicação mais comum do primeiro trimestre e um tema de alta frequência nas provas de residência, exigindo do candidato o conhecimento sobre sua classificação, etiologias, diagnóstico diferencial e, principalmente, o manejo adequado para cada situação clínica.
Introdução e Epidemiologia
Formalmente, o abortamento é definido como a perda gestacional que ocorre antes de 20 a 22 semanas completas de gestação (contadas a partir da data da última menstruação) ou, alternativamente, a perda de um feto com peso inferior a 500 gramas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) utilizam o marco de 22 semanas. Para fins de prova, a definição de antes de 20 semanas é a mais classicamente aceita.
A incidência é extremamente alta. Estima-se que 15-20% de todas as gestações clinicamente reconhecidas terminem em abortamento espontâneo. Se incluirmos as perdas pré-clínicas (gestações químicas, diagnosticadas apenas por β-hCG positivo), esse número pode chegar a 50%.
Classificação Clínica do Abortamento
A classificação é baseada nos achados clínicos (sangramento vaginal, dor pélvica) e no exame físico, especialmente o toque vaginal e o exame especular que avaliam a perviedade do colo uterino. Esta classificação é fundamental para determinar a conduta.
| Tipo de Abortamento | Sangramento Vaginal | Dor (Cólica) | Colo Uterino | Achados Ultrassonográficos |
|---|---|---|---|---|
| Ameaça de Abortamento | Presente, geralmente discreto a moderado | Pode estar presente ou ausente | Fechado | Embrião com batimento cardíaco fetal (BCF) presente; útero compatível com a idade gestacional. |
| Abortamento Inevitável | Presente, geralmente moderado a intenso | Presente, cólicas intensas | Aberto | Embrião com ou sem BCF, localizado no segmento inferior do útero ou no canal cervical. |
| Abortamento Incompleto | Presente, intenso, pode conter coágulos e restos ovulares | Presente, cólicas intensas | Aberto | Presença de restos ovulares (material ecogênico heterogêneo) na cavidade uterina; espessura endometrial aumentada (>15 mm). |
| Abortamento Completo | História de sangramento e cólicas que melhoraram ou cessaram | Geralmente ausente ou leve após a expulsão | Fechado (ou entreaberto) | Cavidade uterina vazia, com linha endometrial fina e regular (<15 mm). |
| Abortamento Retido | Ausente ou discreto (borra de café) | Ausente | Fechado | Embrião sem BCF; ou saco gestacional anembrionado (vazio). Útero menor que o esperado para a idade gestacional. |
| Abortamento Séptico | Presente, com odor fétido | Presente, dor intensa à palpação uterina | Aberto, com secreção purulenta | Restos ovulares, gás na cavidade uterina (sinal de infecção por anaeróbios). Associado a sinais sistêmicos de infecção (febre, taquicardia, hipotensão). |
Fisiopatologia
As causas do abortamento são divididas em fetais (ovulares) e maternas. A grande maioria das perdas no primeiro trimestre está relacionada a fatores fetais.
Causas Fetais (Ovulares)
Anormalidades Cromossômicas são a causa mais comum de abortamento espontâneo, respondendo por mais de 50% das perdas no primeiro trimestre. Geralmente são eventos esporádicos ("acidentes da natureza") e não recorrentes.
- Aneuploidias: Alterações no número de cromossomos.
- Trissomias autossômicas: São as mais frequentes. A trissomia do cromossomo 16 é a mais comum encontrada em produtos de abortamento, sendo invariavelmente letal.
- Monossomia do X (Síndrome de Turner): É a aneuploidia específica mais comum, embora a maioria dos fetos com esta condição seja abortada espontaneamente.
- Poliploidias: Presença de conjuntos extras de cromossomos (triploidia, tetraploidia).
Causas Maternas
- Anomalias Uterinas: Podem ser congênitas ou adquiridas.
- Congênitas (Müllerianas): O útero septado é a anomalia mais associada ao abortamento de repetição, pois o septo fibroso oferece um local de implantação com vascularização inadequada. Outras anomalias incluem útero bicorno e didelfo.
- Adquiridas: Miomas submucosos (distorcem a cavidade), pólipos endometriais, e sinéquias uterinas (Síndrome de Asherman), que geralmente resultam de curetagens prévias.
- Fatores Endócrinos:
- Diabetes Mellitus descompensado: Níveis elevados de hemoglobina glicada (HbA1c) no primeiro trimestre estão associados a um risco aumentado de aborto e malformações congênitas.
- Doenças Tireoidianas: Tanto o hipotireoidismo quanto o hipertireoidismo não controlados podem levar à perda gestacional. A presença de anticorpos antitireoidianos (anti-TPO) também é um fator de risco.
- Insuficiência do Corpo Lúteo: Produção inadequada de progesterona, um hormônio essencial para a manutenção da gestação inicial.
- Fatores Imunológicos:
- Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide (SAAF): É a causa mais comum de trombofilia adquirida e uma causa importante de abortamento de repetição. Caracteriza-se por eventos trombóticos e/ou perdas gestacionais recorrentes na presença de anticorpos antifosfolípides (anticoagulante lúpico, anticardiolipina, anti-β2-glicoproteína I).
- Infecções: Infecções agudas maternas (ex: toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus, herpes, sífilis - grupo TORCHS), bem como vaginose bacteriana, podem estar associadas a perdas gestacionais.
- Outros Fatores: Idade materna avançada (>35 anos), tabagismo, etilismo, uso de drogas ilícitas e exposição a toxinas ambientais.
Apresentação Clínica e Exame Físico
Os dois sintomas cardinais do abortamento são o sangramento vaginal e a dor pélvica tipo cólica.
Anamnese
A investigação deve focar na data da última menstruação (para estimar a idade gestacional), na quantidade e característica do sangramento (borra, sangue vivo, com coágulos, com tecidos), e na intensidade da dor. É crucial perguntar sobre febre, calafrios ou secreção vaginal com odor fétido, que sugerem infecção.
Exame Físico
- Avaliação Geral e Sinais Vitais: O primeiro passo é avaliar a estabilidade hemodinâmica da paciente. Taquicardia e hipotensão são sinais de alerta para hemorragia significativa. A presença de febre levanta a suspeita de aborto séptico.
- Exame Abdominal: Palpar o abdome em busca de dor, defesa ou sinais de irritação peritoneal. Um abdome agudo pode indicar complicações como perfuração uterina ou uma gravidez ectópica rota.
- Exame Especular: Essencial para:
- Visualizar a origem do sangramento (se vem do orifício cervical).
- Quantificar o sangramento.
- Verificar a presença de restos ovulares no canal cervical ou na vagina.
- Avaliar o colo quanto a lesões ou pólipos.
- Coletar material para culturas se houver suspeita de infecção.
- Toque Vaginal Bimanual: Determina:
- O status do colo uterino: Se está fechado (sugere ameaça ou aborto retido) ou aberto/pérvio (sugere aborto inevitável ou incompleto).
- O tamanho do útero: Comparar com o esperado para a idade gestacional. Um útero menor que o esperado pode indicar um aborto retido.
- A presença de dor à mobilização do colo e/ou massas anexiais: Achados importantes para o diagnóstico diferencial com gravidez ectópica.
Raciocínio Clínico
A diferenciação entre os tipos de abortamento se baseia em dois achados principais do exame físico: o colo uterino está aberto ou fechado? Uma paciente com sangramento e colo fechado tem uma ameaça de abortamento (se o feto estiver vivo) ou um aborto retido (se houver óbito embrionário). Se o colo estiver aberto, o abortamento é inevitável ou já está em curso (incompleto).
Avaliação Diagnóstica
Ultrassonografia Transvaginal (USTV)
É o método de imagem de escolha e o pilar do diagnóstico. A USTV permite:
- Confirmar a localização da gestação: O primeiro passo é garantir que a gestação é intrauterina, excluindo uma gravidez ectópica.
- Avaliar a viabilidade fetal: A visualização de atividade cardíaca embrionária confirma a viabilidade. A ausência de BCF em um embrião com comprimento cabeça-nádega (CCN) > 7 mm é diagnóstica de perda gestacional.
- Diagnosticar gestação anembrionada: Um saco gestacional com diâmetro médio > 25 mm sem a presença de um embrião.
- Identificar restos ovulares: Em casos de aborto incompleto, o endométrio se apresenta espessado (>15 mm) e com conteúdo heterogêneo. No aborto completo, a cavidade está vazia e o endométrio fino.
Dosagem Quantitativa de β-hCG
A dosagem seriada de β-hCG é particularmente útil quando a USTV é inconclusiva (ex: gestação muito inicial).
- Evolução Normal: Em uma gestação tópica e viável, os níveis de β-hCG devem dobrar aproximadamente a cada 48-72 horas.
- Evolução Anormal: Níveis que platô ou caem são altamente sugestivos de uma gestação inviável (abortamento ou ectópica em resolução). Um aumento lento (menor que 53% em 48h) é suspeito para gravidez ectópica.
- Zona Discriminatória: Refere-se ao nível de β-hCG (geralmente 1.500-2.000 mUI/mL) acima do qual um saco gestacional intrauterino deve ser visível na USTV. Se o β-hCG está acima desse valor e o útero está vazio, a suspeita de gravidez ectópica é muito alta.
Tratamento e Manejo
A conduta depende do tipo de abortamento, da estabilidade hemodinâmica da paciente, da idade gestacional e da preferência da paciente.
Opções de Tratamento para Abortamento Incompleto, Inevitável ou Retido
| Modalidade | Descrição | Vantagens | Desvantagens |
|---|---|---|---|
| Conduta Expectante | Observação, aguardando a expulsão espontânea do conteúdo uterino. Indicada para pacientes estáveis, com sangramento discreto e sem sinais de infecção. | Evita intervenção médica/cirúrgica e seus riscos. Mais fisiológica. | Taxas de sucesso variáveis (até 80%). Sangramento imprevisível e prolongado. Risco de necessitar de esvaziamento de urgência. Ansiedade para a paciente. |
| Tratamento Medicamentoso | Uso de Misoprostol (análogo da Prostaglandina E1) para induzir contrações uterinas e dilatação cervical. Dose típica: 800 mcg via vaginal. | Evita cirurgia e anestesia. Alta taxa de sucesso (80-90%). Mais previsível que a conduta expectante. | Efeitos colaterais: dor, sangramento intenso, febre, calafrios, diarreia. Requer acompanhamento. Contraindicado em pacientes instáveis. |
| Tratamento Cirúrgico | Esvaziamento uterino.
|
Resolução rápida e definitiva. Taxa de sucesso >95%. Indicado em instabilidade hemodinâmica, sangramento intenso, infecção ou falha dos outros métodos. | Invasivo. Riscos anestésicos e cirúrgicos (perfuração, laceração cervical, hemorragia, infecção, sinéquias). |
Armadilhas do ENARE: Conceito-Chave Validado
Questão ENARE 2024 (Q79) reforçou um conceito central: diante de uma paciente com diagnóstico de abortamento incompleto ou inevitável, especialmente se houver sangramento ativo ou colo pérvio, a conduta padrão-ouro é o esvaziamento uterino. As opções (expectante, medicamentoso, cirúrgico) devem ser individualizadas, mas a necessidade de evacuar a cavidade uterina é o princípio do tratamento. Em uma paciente instável ou com sangramento volumoso, o tratamento cirúrgico (AMIU ou curetagem) é mandatório e de urgência.
Imunoglobulina Anti-D
É obrigatória a administração de Imunoglobulina Anti-D (Rhophylac®, Matergam®) em todas as pacientes Rh-negativo não sensibilizadas que sofrem qualquer tipo de abortamento (espontâneo ou induzido), gravidez ectópica ou sangramento na gestação. O objetivo é prevenir a aloimunização Rh, que pode causar a Doença Hemolítica Perinatal em gestações futuras. A dose padrão é de 300 mcg.
Complicações e Prognóstico
Complicações
- Hemorragia: É a complicação aguda mais comum, podendo levar à instabilidade hemodinâmica e choque hipovolêmico.
- Infecção: Endometrite que pode evoluir para aborto séptico, uma emergência médica com risco de sepse grave e choque séptico.
- Perfuração Uterina: Complicação iatrogênica rara, mais associada à curetagem do que à AMIU. O manejo pode ser conservador ou cirúrgico (laparoscopia/laparotomia) dependendo da estabilidade da paciente e da suspeita de lesão de outros órgãos.
- Síndrome de Asherman: Formação de sinéquias (aderências) intrauterinas como sequela de um trauma endometrial, tipicamente uma curetagem agressiva. Causa infertilidade secundária, amenorreia e perdas gestacionais recorrentes.
Prognóstico
Após um único abortamento espontâneo, o prognóstico para uma futura gestação bem-sucedida é excelente, com taxas de sucesso semelhantes às da população geral. O risco de uma nova perda aumenta ligeiramente após cada abortamento consecutivo.
Populações Especiais
Abortamento Séptico
É uma emergência obstétrica. O quadro clínico inclui febre, calafrios, dor abdominal intensa, útero amolecido e doloroso à palpação, e secreção cervical purulenta e fétida. O manejo é agressivo e baseado em três pilares:
- Estabilização hemodinâmica: Acesso venoso calibroso, reposição volêmica vigorosa com cristaloides, e uso de vasopressores se necessário.
- Antibioticoterapia intravenosa de amplo espectro: Deve ser iniciada imediatamente após a suspeita diagnóstica. O esquema clássico é Clindamicina (cobertura para anaeróbios e Gram-positivos) + Gentamicina (cobertura para Gram-negativos).
- Esvaziamento uterino: É crucial para remover o foco infeccioso. Deve ser realizado logo após o início dos antibióticos e a estabilização inicial da paciente. A curetagem é o procedimento de escolha nestes casos.
Abortamento de Repetição (Perda Gestacional Recorrente)
Definido classicamente como a ocorrência de três ou mais perdas gestacionais consecutivas antes da 20ª semana. Definições mais recentes da ASRM (Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva) consideram a investigação após duas perdas consecutivas.
A investigação busca identificar causas maternas tratáveis, já que as causas fetais cromossômicas são geralmente esporádicas. O workup inclui:
- Avaliação Anatômica do Útero: Histerossalpingografia, ultrassonografia 3D ou histeroscopia para investigar anomalias müllerianas, miomas submucosos, pólipos ou sinéquias.
- Pesquisa de Trombofilias: Principalmente a SAAF (anticoagulante lúpico, anticardiolipina IgG/IgM, anti-β2-glicoproteína I IgG/IgM).
- Avaliação Endócrina: Dosagem de TSH, glicemia de jejum e HbA1c.
- Cariótipo dos Pais: Para investigar translocações cromossômicas balanceadas, uma causa rara, mas importante, de perdas recorrentes.
